Crise no ensino médico





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O erro médico é um dos grandes flagelos da atualidade. Paradoxalmente, ante os avanços tecnológicos, da medicina e da ciência, presenciamos um número crescente de denúncias contra médicos, o que demonstra que alguma coisa não vai bem.



Em dez anos, de 1998 a 2007, o número de médicos denunciados no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) cresceu 140%, muito acima da taxa de aumento de profissionais inscritos (42%) e do crescimento populacional de São Paulo no mesmo período (12 %). Em 2007 foram registradas cerca de 4.500 denúncias contra médicos, boa parte relacionada a erros de diagnóstico e de procedimentos clínicos ou cirúrgicos.



Não há escassez de médicos no Brasil, o que não quer dizer que estejam bem distribuídos geograficamente ou por especialidades. Sabe-se que os fatores socioeconômicos e culturais são em parte responsáveis por essa realidade. Não podemos admitir uma política de Estado que tenta reverter a concentração de médicos nos centros urbanos com o simples aumento no número de formandos.



São Paulo conta hoje com 31 escolas de Medicina. Apenas nos últimos anos, entre 2000 a 2007, foram abertos oito cursos - cinco na capital e três no interior. Destes, sete são privados e cobram mensalidades entre R$ 2.600 e R$ 4.300. O Brasil já conta com 176 escolas médicas, mais que EUA, Rússia e China, nações bem mais ricas e mais populosas. Podemos afirmar que não precisamos de mais médicos, e, sim, de bons médicos.



Ao mesmo tempo que luta contra a abertura indiscriminada de escolas médicas, o Cremesp tem apoiado experiências pioneiras na avaliação das escolas médicas e dos seus egressos. Lamentavelmente, essas iniciativas não surtiram efeito. Apesar da participação de inúmeras faculdades de Medicina e entidades do setor, a discussão sobre a insuficiência das avaliações das instituições de ensino é barrada tanto pelos interesses mercantis dos donos das escolas como pelo viés corporativo das entidades de professores.



É esdrúxulo que o debate público abrangente sobre a instituição de exame de habilitação dos médicos recém-formados tenha sido protelado, quando se sabe que na maioria das faculdades do País são raros os indivíduos que, uma vez admitidos, não conseguem obter o certificado de conclusão. Hoje se confunde diploma com proficiência e competência para toda a vida.



Foram essas circunstâncias, aliadas ao aumento substancial no número de denúncias contra médicos, que fizeram o Cremesp implementar o exame de avaliação dos estudantes de sexto ano de Medicina. Nos países onde se reconhece uma boa medicina, os médicos fazem, necessariamente, residência médica antes de adquirirem o direito pleno ao exercício profissional. No Brasil, a maioria não consegue uma vaga de residente e, mesmo assim, muitas vezes vai trabalhar em prontos-socorros ou lugares periféricos. Desnecessário especular sobre as consequências negativas dessa circunstância tão injusta do ponto de vista humano e social.



Não obstante o boicote explícito ou velado de representações de alunos e professores, o exame realizado pelo Cremesp tem contado com participação significativa de estudantes da ampla maioria das escolas paulistas. Com caráter opcional, a proposta é avaliar se os estudantes adquiriram os conhecimentos exigíveis ao recém-formado.



Em 2008, 61% dos participantes foram reprovados, quase o dobro de três anos atrás. O resultado é surpreendente e preocupante. Demonstra que há tendência de piora num cenário que já não era bom. Se considerarmos que a amostra de voluntários pode ser constituída pelos alunos mais confiantes nos seus conhecimentos, a situação pode ser ainda mais sombria.



O exame também demonstrou que existem deficiências na formação em campos essenciais do conhecimento médico. Foi insuficiente - abaixo de 60% de aproveitamento - o desempenho dos participantes em áreas como pediatria, obstetrícia, ginecologia e clínica médica. Falta conhecimento na solução de problemas de saúde com grande prevalência e em situações frequentes no cotidiano da prática médica, como tratamento inicial do enfarte agudo do miocárdio, atendimento a gestante, diagnóstico de doenças como tuberculose, assistência a alcoolizados e a traumatizados em emergências, dentre outras demandas comuns dos serviços de saúde.



As autoridades da educação e da saúde, assim como os parlamentares, precisam urgentemente considerar a necessidade de uma estratégia de fiscalização das escolas médicas que combine a avaliação continuada durante os anos de formação com um exame terminal, para que apenas os profissionais habilitados tenham acesso ao mercado de trabalho.



Também é inadiável uma reforma na legislação que rege os Conselhos de Medicina, autorizando-os a exigir que os médicos recém-formados, além do diploma, apresentem também comprovação de competência por meio de exame de habilitação realizado por organismo externo à instituição que o graduou.



No mundo desenvolvido, cada vez mais se reconhece a necessidade de um controle que ultrapasse os limites burocráticos dos governos e possa garantir a boa formação dos indivíduos antes de iniciarem a prática profissional. Esse fenômeno não deve se restringir à medicina, deve-se estender às diversas áreas do conhecimento.



Há, por fim, que criar um organismo independente, com competência técnica, autonomia financeira e autoridade para efetuar o exame dos médicos recém-formados em todo o Brasil. Acreditamos que essa idéia está madura e que é chegado o momento da mudança.



Bráulio Luna Filho, médico cardiologista, pós-doutorado pela Harvard Medical School, livre-docente em Cardiologia
na Unifesp-EPM, é coordenador do exame do Cremesp



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