21/05/2007

Guerra pelos remédios


Governo luta para derrubar liminares que o obrigam a fornecer medicamentos de graça para pacientes. Gastos aumentaram 211,4%




Depois de comprar briga com a indústria farmacêutica ao quebrar a patente do Efavirenz, o Ministério da Saúde começa nova guerra. E, desta vez, tem o apoio dos secretários de saúde e do Conselho Federal de Medicina para enfrentar a "indústria de ações" que tem levado a Justiça a impor ao setor público a compra, a preços altos, dos últimos lançamentos da indústria farmacêutica. São medicamentos novos que, muitas vezes, nem foram testados adequadamente. De acordo com o Ministério da Saúde, os gastos em função de decisões judiciais aumentaram 211,4% de 2005 para 2006.


Por trás das ações judiciais estão as indústrias de medicamentos, que utilizam todos os recursos para vender seus produtos, inclusive a contratação de advogados para patrocinar as ações na Justiça em nome dos pacientes. "A pressão é enorme", conta Dirceu Barbano, diretor de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde. O tema coloca em xeque a conduta ética de médicos.


"Tornamo-nos reféns das grandes indústrias multinacionais", reclama o secretário de Saúde de Santa Catarina, Dado Cherem, que tem em mãos 3 mil ordens judiciais, obrigando o estado a fornecer medicamentos. No ano passado, o governo catarinense gastou R$ 36 milhões com a compra de medicamentos por ordem da Justiça. Em 2005, foram R$ 25 milhões. "É uma coisa que nos preocupa, porque está crescendo como uma bola de neve e criando a cultura do processo judicial", comenta. Ele alerta: "Daqui a pouco o orçamento vai estar tão comprometido que vamos deixar de atender a população por causa dos tratamentos de alto custo."


O presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Gabriel Tannus, afirma que "é papel da indústria pressionar o governo". Ele lembra que as empresas "gastam milhões em pesquisa" para desenvolver um produto que traz benefícios aos doentes. Segundo Tannus, a discussão levada pelo governo camufla o verdadeiro problema: falta de dinheiro para a saúde. "Os recursos são finitos. Não é fácil administrar essa escassez", observa. "O Brasil tem adiado por razões orçamentárias a incorporação de novas tecnologias", acrescenta.


O Distrito Federal é uma exceção: o volume de ações judiciais caiu 14% de 2006 para 2007, informa Milton Menezes, subsecretário de Atenção à Saúde. Mesmo assim, a Secretaria de Saúde do DF criou uma farmácia somente para fornecer os medicamentos por ordem da Justiça. É conhecida entre os funcionários do GDF como "Farmácia de Ações".


A preocupação é tão grande que o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde decidiu fazer um seminário na terça-feira especificamente para tratar do caso. Os secretários convidaram representantes do Judiciário, do Ministério Público e das associações médicas. O problema é maior pela falta de conhecimento técnico dos juízes para analisar os casos.



Desinformação


Barbano cita exemplos absurdos que mostram que o juiz decide sem um mínimo de informação. Segundo o diretor do Ministério da Saúde, em São Carlos (SP) uma ordem judicial determinou o fornecimento, em 48 horas, de remédio que deveria ser usado três vezes ao dia. Como ninguém conseguia decifrar a letra do médico, foram procurá-lo e ele explicou que não tinha receitado medicamento nenhum e sim "fazer alongamento três vezes ao dia".


Na avaliação de Barbano, a indústria farmacêutica usa o Judiciário, os médicos e organizações não-governamentais para forçar a venda de seus produtos. A preocupação com a saúde está em segundo plano. Há casos de medicamentos que ainda não tiveram sua eficácia comprovada cientificamente. Barbano cita um exemplo em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrou dois remédios para tratamento da hipertensão pulmonar, mas ainda não há "estudos de evidência científica" para que o governo os inclua nos programas de saúde pública. A Justiça, porém, manda fornecer, embora as únicas informações disponíveis sejam do próprio laboratório. Segundo o diretor do Ministério da Saúde, Dirceu Barbano, a União muitas vezes é obrigada a ceder às pressões, incorporando um determinado produto à lista de medicamentos fornecidos pelo SUS.


Daqui a pouco, o orçamento vai estar tão comprometido que vamos deixar de atender a população por causa dos tratamentos de alto custo - Dado Cherem, secretário de Saúde de Santa Catarina




Os recursos são finitos. Não é fácil administrar essa escassez. Mas o Brasil tem adiado por razões orçamentárias a incorporação de novas tecnologias - Gabriel Tannus, presidente da Interfarma




Desperdício milionário



O presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, Osmar Terra, afirma que 20% dos medicamentos de alto custo comprados pelo setor público não têm surtido efeito. Anualmente, são gastos R$ 2 bilhões com remédios de alto custo - produzidos com tecnologia de ponta e recém-descobertos pela indústria. "A garantia de acesso aos medicamentos e de tratamento integral é um grande avanço, mas não pode ser usado para aumentar o faturamento dos laboratórios", reclama Terra, secretário de Saúde do Rio Grande do Sul.


O governo gaúcho, representantes do Judiciário e do Ministério Público estabeleceram procedimentos para evitar que a indústria use a Justiça para forçar a compra de medicamentos sem eficácia ou ainda não testados. A expectativa é que isso evite o crescimento acelerado do número de ações. "Os laboratórios estão empurrando para os estados os custos das pesquisas", afirma. A indústria alega que o custo dos novos medicamentos é alto porque de 10 pesquisas apenas uma chega a um resultado. "O Estado não pode financiar as pesquisas dos laboratórios", ressalta Terra. Por isso, o governo gaúcho decidiu não comprar mais medicamentos experimentais.


Diretor de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Marcos Antônio Ferreira afirma que há desperdício de dinheiro público também com medicamentos vencidos. Em Brasília, a "Farmácia de Ações" faz aquisições com base em ordens judiciais.


Só que muitos pacientes mudam, morrem ou não buscam o remédio. A secretaria está estudando a possibilidade de contratar, por licitação, uma empresa, que se encarregaria de fornecer todos os medicamentos determinados pela Justiça.



Lista


Presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Gabriel Tannus reclama que há mais de quatro anos o governo federal não atualiza a lista de medicamentos. Nesse período, foram incorporados apenas quatro novos produtos pela União.


Diversos outros remédios estão disponíveis, mas o setor público não os fornece aos doentes. Tannus admite que há casos de medicamentos ainda em fase experimental. "Mas são raros", comenta. Ele reclama que o assunto tem sido tratado de forma "negativa", embora o acesso ao medicamento seja assegurado pela Constituição.



Jogo de interesses nos tribunais

Advogados atuam gratuitamente para processar a União, estados e municípios. Pacientes são muitas vezes estimulados pela própria indústria farmacêutica, interessada em vender os seus medicamentos


Um fabricante fornece o medicamento gratuitamente aos doentes por um curto período. Depois, avisa: se quiserem continuar o tratamento recorram à Justiça. É a própria indústria que trata de empurrar o doente às barras dos tribunais. É aí que entram aí as organizações não-governamentais (ONG). Elas vêm dando orientação aos doentes para que recorram à Justiça. Querem obrigar municípios, estados ou a União a fornecer gratuitamente os medicamentos que necessitam.


É o caso da Associação Brasileira do Câncer, de São Paulo. Em seu site, a entidade se dispõe a apoiar quem quiser entrar na Justiça. Os interessados são encaminhados para o escritório Peris Advogados - que é apresentado como "especializado na área de saúde" e atende gratuitamente. Sócio do escritório, Raul Peris confirma que recebe pessoas indicadas também por igrejas, sem cobrar nada de honorários. "É o trabalho social do escritório", afirma.


Outros pacientes pagam um valor simbólico, apenas para cobrir as despesas processuais. O advogado admite, no entanto, que a maioria de sua clientela é formada de gente que pode pagar. É que, independentemente da classe social, poucas pessoas conhecem seus direitos. Peris explica que é dessa forma que o escritório se viabiliza. O dinheiro ganho dos ricos financia as causas dos pobres. "É um trabalho de Robin Hood", comenta. Com a procuração do paciente em mãos, são mínimas as chances de perder a causa. Se um juiz nega um pedido contra o estado, ele entra com outra ação contra o município ou a União. "Se de uma forma não vai, vai de outra", afirma. Além disso, ainda é possível recorrer ao tribunal, que, segundo o advogado, "tem uma postura de respeito à dignidade humana".


O advogado confirma que os representantes comerciais dos laboratórios informam os médicos que seus pacientes podem entrar na Justiça e receber o medicamento, não importa o preço. "O Código de Saúde de São Paulo prevê direito até à alimentação digna", observa. "Se o governo não gosta, que mude a lei."


Presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Gabriel Tannus admite: os laboratórios mantêm um relacionamento estreito com as ONGs e as associações de doentes, repassando informações sobre as doenças e os últimos recursos da medicina. "Dizer que a Constituição garante o direito não pode ser taxado de ilegal ou imoral", afirma. Se o governo fosse mais ágil na atualização da lista de medicamentos, comenta Tannus, o problema seria reduzido.



Hepatite


Com atuação em vários países, o Grupo Otimismo, do Rio, promete apoio aos portadores de hepatite. Economista e químico, Carlos Varaldo afirma que não aceita contribuição nem do governo nem dos laboratórios. "A gente bate em todo mundo", avisa. Quando se trata de medicamento experimental, ele fica ao lado do Ministério da Saúde. "Concordo com os secretários. É sacanagem. Isso tem que ser combatido. O Judiciário não pode autorizar", adverte. Os chamados medicamentos experimentais são os últimos lançamentos da indústria e ainda não foram testados suficientemente. Depois de testados, ressalta, o governo precisa incorporá-los.


Quando a ação é contra o governo, explica, a ONG orienta as pessoas a procurarem a Defensoria Pública. Os advogados particulares entram com ações contra os planos de saúde, sem cobrar dos doentes. "Não trabalho com escritório que cobra", afirma. Ele conta que, ao processar um plano de saúde, normalmente o advogado entra também com uma ação por danos morais. É nessa ação que se ganha dinheiro.


Fonte: Correio Braziliense

Envie para seus amigos

Verifique os campos abaixo.
    * campos obrigatórios

    Comunicar Erro

    Verifique os campos abaixo.

    * campos obrigatórios