14/08/2006

Médicos heróis

O drama dos médicos que cumprem jornadas exaustivas em hospitais públicos e muitas vezes precisam decidir qual vida salvarão primeiro em meio a tantos doentes graves

Todos os dias eles levantam bem cedo, vestem aquelas roupas brancas e entram na luta para salvar pessoas. Trabalham as horas que forem necessárias, muitas vezes nos finais de semana. Fazem parte do batalhão de médicos heróicos que enfrentam a precariedade da saúde pública do País, ganham pouco (alguns menos de R$ 2 mil por mês) e não raramente vivem o drama de ter que escolher se cuidam de um paciente em estado crítico, com chance zero de sobrevida, ou de outro com condições um pouco melhores, mas também pequenas, de recuperação. A qual deles dar prioridade? "Aos dois", responde o oncologista infantil Sidney Epelman, 48 anos, presidente da Associação para Adolescentes e Crianças com Câncer (Tucca), capaz de trabalhar mais de 12 horas por dia em sua clínica e no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para cumprir todos os compromissos.

Além da atividade dupla, Epelman lidera um trabalho social no Hospital Santa Marcelina, em Itaquera, periferia de São Paulo. "Digo que tenho três filhos, um deles é a associação." No Brasil, ele diz, surgem sete mil novos casos de crianças com câncer cerebral ao ano, sendo a leucemia a mais freqüente. "Recebemos pacientes que vêm do Acre, outros que chegam de Manaus depois de viajar 15 dias de barco e até índios. No Brasil, anualmente, são diagnosticados 1.4 mil novos casos de tumor cerebral. A maior incidência ocorre entre a faixa etária de quatro e nove anos. Se tratados adequadamente, mais de 60% destes pacientes seriam curados.

Supostamente, quando o hospital tem boa estrutura, a medicina pode ser humanizada e o médico, menos sobrecarregado. Isso seria verdade se o sistema de saúde funcionasse bem de forma geral. Mas o estado comatoso da saúde pública no Brasil faz com que nem mesmo um hospital bem equipado consiga manter seus profissionais longe de uma rotina dramática. Esse é o caso do Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia (Into), no centro do Rio de Janeiro, um hospital público federal referência no tratamento de doenças ortopédicas, inclusive algumas raras, como osteogênese imperfecta (popularmente conhecida como osso de vidro), e que oferece boa estrutura de atendimento.
Apesar disso, médicos como o ortopedista carioca Celso Rizzi, 40 anos, coordenador do Serviço de Ortopedia do Instituto, precisam dedicar-se quase que integralmente para atender à demanda. "Temos uma fila de espera de seis meses", diz. "Recebemos gente de vários Estados. Acabamos tendo um excesso de pacientes muito grande", explica. Rizzi recebe salário mensal de R$ 1,4 mil e trabalha em média 40 horas por semana. Para completar a renda, trabalha em dois outros hospitais particulares na cidade. Como mora na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, e os hospitais são no centro - distantes em torno de 30 quilômetros -, ele acaba vivendo mais dentro das instituições e do carro do que com a família. Sua jornada começa entre 4h e 5h, quando acorda para fazer atividade física antes de começar a batalha. Pouco depois das 6 horas já está a caminho do instituto. Voltará para sua casa pelo menos 12 horas depois. Raramente com a sensação de dever cumprido, embora dê o sangue no trabalho.

Fim de semana poderia ser de descanso, mas nem sempre é. Rizzi e seus três colegas ortopedistas do instituto fazem mutirões de cirurgia nos sábados e domingos para tentar acelerar a fila de espera. "Já trabalhamos fora do Estado do Rio também. No início a fila diminui, mas depois volta tudo ao que era", reflete. Se o mutirão é fora do Rio, o médico recebe adicional de R$ 400. Se for na própria cidade, nada é pago. Ninguém reclama: Rizzi é um daqueles médicos " de antigamente", que entende a medicina como uma missão. "Além do trabalho assistencial, acabamos tendo também um trabalho científico adicional", conta. "Temos de passar nossas experiências - às vezes, em doenças raríssimas- para outras pessoas. O médico tem a função de transmitir experiência aos mais jovens", completa.

Ao ser perguntado sobre o último momento dramático vivido no instituto, Rizzi responde: "Vivemos isso diariamente." E explica que, por não estar diretamente ligada à idéia da morte, sua especialidade não é tratada como alvo de urgências ou dramas. "Problemas ortopédicos não matam, mas deixam seqüelas tão graves que podem significar a morte para o doente. Não lidamos diretamente com a morte, mas com problemas graves a longo prazo. No dia-a-dia, somos obrigados a selecionar alguns casos que estão no fim da fila, mas que não podem esperar. Fazemos a opção de passar aquela pessoa na frente para que não tenha seqüela maior. É triste, mas é a realidade que a situação nos impõe." É tão triste que o Brasil apareceu recentemente em 81º lugar em uma lista de 178 países, atrás de nações como República Dominicana, El Salvador e Namíbia, numa pesquisa que buscou mapear o bem-estar do planeta. Foram usadas informações da Unesco, da CIA, a agência de inteligência americana, e da Organização Mundial de Saúde. A conclusão é a de que fatores como saúde e educação são determinantes na hora de se aferir o nível de felicidade de uma nação.

A real sensação de felicidade é a que mostra pacientes e familiares ao deixar o pronto-socorro do Hospital das Clínicas, o maior hospital da América Latina. Por ali passam 700 pessoas por dia, sob a supervisão de Soraya Baraket, uma médica de 46 anos que se diz bem estruturada para enfrentar a enxurrada de tragédias que chegam todos os dias. "São 20 anos de trabalho e isso cria uma forte barreira de defesa", ela diz. Mesmo assim, não escapa de se envolver com as desgraças de uns e outros. "Todos os que trabalham no pronto-socorro são heróis. Só mesmo com muita convivência o impacto não é avassalador. O pronto-socorro funciona 24 horas, o que permite a entrada de pacientes com problemas menores, como uma simples dor de cabeça. Isso sobrecarrega a estrutura e prejudica o atendimento de pacientes em estado mais grave.

Outro exemplo de superação e dedicação à saúde pública é o trabalho da equipe do oftalmologista Newton Kara-José, 66 anos, professor-titular da USP e Unicamp e chefe de oftalmologia dos hospitais das duas instituições. Um de seus orgulhos é o Projeto Cataratas, um mutirão de cirurgias que, desde 1986, já atingiu mais de 900 mil pessoas com este problema nos olhos. Seu trabalho envolve crianças, algumas vezes vítimas de glaucoma, o que parece inimaginável para quem não entende do assunto, mas acontece. Falta dinheiro e atenção do governo, sobra afinco de médicos como Kara-José para enfrentar a realidade precária. O que é isso, senão heroísmo?


Por Célia Chaim e Eliane Lobato.

Fonte: Revista IstoÉ "Medicina e bem-estar" - 13/08/2006

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