16/03/2018

CRM-PR repudia proposta de lei que viola autonomia médica

Projeto sobre atendimento a usuários dos planos de saúde é inconstitucional; solicitado o veto do governador

O Conselho Regional de Medicina do Paraná manifesta-se em oposição ao projeto de lei n.º 195/2016, aprovado em três turnos na Assembleia Legislativa do Paraná e que, retirado de pauta por 10 sessões, deve ser levado em breve à apreciação do governador Beto Richa. De autoria do parlamentar Nereu Moura, a proposta visa proibir a diferenciação de horários entre atendimentos a pacientes credenciados pelos planos de saúde e os particulares, no que concerne à marcação de consultas médicas, exames auxiliares de diagnóstico e outros procedimentos ambulatoriais, não caracterizados como urgência e emergência.

Entendendo a proposta como violação à autonomia e liberdade profissional do médico, o CRM-PR decidiu por unanimidade, em sessão plenária de 5 de março, pela posição pública de contrariedade aos termos como o projeto foi apresentado e aprovado e de buscar os meios necessários para expor a sua inconstitucionalidade, a violação dos preceitos do Código de Ética Médica e a inconformidade com o que fixa o órgão regulador, a Agência Nacional de Saúde Suplementar. O Conselho já oficiou ao governador Beto Richa e também ao secretário da Saúde, Michele Caputo Neto, e ao secretário-chefe da Casa Civil, Valdir Rossoni, reiterando a sua posição e das demais entidades médicas e pedindo a não promulgação da lei.

Inconstitucionalidade

“A situação jurídica em mesa tem como atores os beneficiários de planos de saúde, que em verdade não têm relação direta com os médicos. O que há é uma relação contratual com a operadora do plano de saúde que, por sua vez, tem uma relação contratual com os profissionais e estabelecimentos de saúde credenciados (artigo 17-A da Lei n.º 9.656/98). Portanto, o projeto de lei acaba por tratar das regras de atendimento dos beneficiários das operadoras de planos de saúde, o que é regulado por contrato e pelo artigo 3º da Resolução Normativa ANS n.º 259/2011, atualizada pela RN 428/2017”. O esclarecimento é feito pelo assessor jurídico do Conselho, Martim Afonso Palma, que chama a atenção para o fato de que já é regra a operadora garantir o atendimento integral das coberturas dentro dos prazos fixados, como o período de até sete dias para consultas básicas nas áreas de pediatria, clínica médica, cirurgia geral e ginecologia e obstetrícia.

Reforça o advogado que o projeto é flagrantemente inconstitucional, pois trata de matéria afeita ao Direito Civil (contratos), cuja competência legislativa é privativa da União Federal, como prescreve o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Outro aspecto analisado é a ausência de sanção ao eventual descumpridor, o que pode ser configurado como erro técnico legislativo. “Quem apuraria o suposto descumprimento da ilegalidade estadual? A tese não se sustenta, pois a matéria é afeita à União, como já legislado, uma vez que a ANS traz a vedação da desatenção ao usuário e traz sanção (multa) a ser aplicada, com o que o Estado não pode se imiscuir na relação plano-médico, que tem contratos específicos e legislação própria da esfera federal”, completa Martim Palma.

Pareceres do Conselho reiteram condição de autonomia do médico

A ANS, em suas normativas, dispõe sobre as regras para celebração de contratos entre as operadoras de planos de assistência à saúde e os prestadores de serviços de atenção à saúde, o que permite determinar o período e as condições em que o médico estará à disposição dos usuários de cada plano ou empresa contratante. Em linhas gerais, essa contratualização oferece absoluta transparência às partes sobre a agenda do profissional, que, contudo, não estará imune a sanções administrativas e éticas na hipótese de efetivo descumprimento, podendo ser denunciado tanto à ANS quanto ao Conselho de Medicina.

A distinção entre agenda de usuários de planos e particulares é assunto que ao longo dos anos vem suscitando questionamentos, sob o advento da Lei Federal n.º 9.656/98, que trata da saúde suplementar. Assim, o CRM-PR tem sido instado a oferecer posição sobre o tema de forma sucessiva. Porém, o entendimento é uniforme como explicitado em seus pareceres-consulta, sendo exemplo o contido no Parecer CRM-PR n.º 2298/2011, que aponta:

“Não existe óbice em um profissional médico estabelecer horários para o atendimento de pacientes particulares e de planos de saúde, de forma que possa exercer sua autonomia e garantir uma melhor atenção à saúde de seus pacientes. O simples estabelecimento destes horários não compromete a liberdade profissional, pois o médico continua tendo o seu direito assegurado para férias, estudos e outras atividades. Da mesma forma, não pode ser considerado como ato discriminatório, pois as regras publicadas demonstram previamente a disponibilidade do profissional.”

Deste modo, o CRM-PR reitera o que preceitua o Código de Ética Médica em seus princípios fundamentais: (I) a Medicina é uma profissão a serviço do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza; (II) o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional; (V) compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente; (VII ) o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente; e (VIII) o médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

O Conselho de Medicina do Paraná assevera o seu entendimento de que a relação médico-paciente não encontra enquadramento à lei consumerista, alinhando-se à corrente de inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à prestação do serviço médico, que está relacionado à vida, à saúde e à integridade física e moral e, por serem bens indisponíveis e não consumíveis, não podem ser transferidos a outrem. “Por ter uma responsabilidade subjetiva, a relação médico-paciente não se caracteriza uma relação de consumo. Desta forma, o que se aplica ao profissional da Medicina é o disposto no Código Civil e não do Código de Direito do Consumidor (CDC)”, ensina o desembargador Miguel Kfouri Neto, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná e uma dos mais renomados especialistas do país no campo do Direito Médico. Ele reforça: “A relação médico-paciente não se caracteriza como uma relação de consumo, até porque o médico não pode se vincular a um resultado positivo. A responsabilidade deriva da culpa médica, quer dizer imperícia, imprudência e a negligência”.

Importante esclarecer o que diz o artigo 18 da Lei dos Planos (9.656), com nova redação dada pela Lei n.º 13.003/2014: “A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou profissional de saúde, da condição de contratado, referenciado, credenciado ou cooperado de uma operadora de produtos (...) implica as seguintes obrigações e direitos: o consumidor de determinada operadora, em nenhuma hipótese e sob nenhum pretexto ou alegação, pode ser discriminado ou atendido de forma distinta daquela dispensada aos clientes vinculados a outra operadora ou plano; a marcação de consultas, exames e quaisquer outros procedimentos deve ser feita de forma a atender às necessidades dos consumidores, privilegiando os casos de emergência ou urgência, assim como as pessoas com mais de sessenta e cinco anos de idade, as gestantes, lactantes, lactentes e crianças até cinco anos.”

A legislação é clara, portanto, na organização do sistema, o que vale dizer que os deveres e direitos estão postos. O regramento não impõe em nenhum momento a obrigação de o médico renunciar à sua autonomia e ao que celebrou contratualmente. Um pediatra de Curitiba, sem vínculo com planos, em manifestação levada aos parlamentares que aprovaram o projeto, foi incisivo e claro: “Os médicos que atendem pacientes de planos de saúde são, contratualmente, prestadores de serviços e para tal atividade reservam parte de seus horários de atendimento; outro espaço da jornada, em proporção muito menor pela própria situação econômica do país, é reservado aos particulares. O usuário de plano que opta por um médico específico, quando a agenda desse profissional estiver completa no espaço reservado a tal clientela, pode, sem coação e mediante a comprovada excepcionalidade, ajustar-se à condição de particular, custeando o valor da consulta com recursos próprios. Não há ilícito legal, ético ou moral nessa prática”.

Ressalte-se que é de responsabilidade da operadora expor aos seus associados as disponibilidades de jornada de cada profissional credenciado, bem como de oferecer opções de acesso a outros prestadores de serviços para suprir demanda, eis que há determinação de prazo máximo de espera por atendimento, excetuando os casos de urgência e emergência que não são supridos em consultórios médicos.

O Conselho de Medicina, ao lado da Associação Médica do Paraná e sociedades de especialidade, estão – como sempre estiveram ‑ à disposição da sociedade para análise e debate coletivo dessa e outras matérias que tramitam nas casas legislativas estadual e municipais, muitas delas desprovidas de viabilidade técnica e econômica e atendendo somente a apelos eleitoreiros.

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