17/07/2007

"A medicina não pode ser um negócio"


Entrevista Adib Jatene: Cirurgião cardíaco pede mais honestidade e a criação de prova antes de dar registro profissional aos novos médicos


O médico Adib Domingos Jatene, 78 anos, acaba de receber uma homenagem memorável. Por decisão do governo da Grécia e da Sociedade de Cardiologia daquele país, foi laureado como um dos sete homens sábios do planeta no campo da cirurgia cardiovascular. Um dos feitos que o tornaram respeitado internacionalmente foi a invenção da cirurgia que corrige uma grave alteração na anatomia do coração dos recém-nascidos, chamada de transposição das grandes artérias, mal incompatível com a vida. Mas há muitos outros. A homenagem, feita em maio, tocou fundo o médico nascido em Xapuri, no Acre, que há 53 anos milita para levar a rotina de pesquisador em conjunto com a busca de soluções para a saúde brasileira. Um dos principais responsáveis pelo crescimento de duas das maiores instituições da cardiologia nacionais, o Instituto do Coração e o Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, Jatene também foi secretário estadual e ministro da Saúde. Desde 1976, dirige o Hospital do Coração. Nesta entrevista, diz que está muito preocupado com os descaminhos da formação dos jovens médicos, revela os mecanismos usados pelo governo para diminuir o dinheiro público para a saúde e chama a atenção da elite brasileira para que tenha mais responsabilidade social.

ISTOÉ - Hoje há cerca de 160 escolas de medicina no País. Em 96, eram 82. Precisamos de tantas?

Adib Jatene - Há uma desarrumação. O Ministério da Educação acredita que deve formar o maior número de profissionais e que o mercado irá selecionálos. Em algumas profissões, não há possibilidade de emprego para mais de 15% dos formandos. Porém, na medicina, o mercado não tem condição de selecionar. Portanto, é necessário haver estruturas para formar um médico capacitado ao atendimento que a população precisa e, sobretudo, às emergências. Mas o problema é que há muitas escolas de medicina sem locais de treinamento nem hospitais para os estudantes. Isso prejudica a formação. As escolas fazem convênios com hospitais privados e colocam os alunos lá, sem supervisão. O resultado é que a residência médica (pósgraduação para completar a formação do estudante de medicina) acaba sendo indispensável para a formação. Como pouco mais da metade dos alunos consegue uma vaga, quem fica sem residência vai trabalhar nos serviços de emergência.

ISTOÉ - O primeiro emprego de muitos jovens médicos é nos prontos-socorros, sem o treinamento adequado?

Jatene - Exatamente. É um problema muito sério que começa a ser discutido.

ISTOÉ - Como impedir que médicos despreparados atendam à população?

Jatene - Não é o diploma que autoriza o indivíduo a exercer a profissão, é o registro no Conselho Regional de Medicina, o CRM. Mas ele virou uma espécie de cartório. O recém-formado leva o diploma e pega a carteira. Mas o Conselho Federal de Medicina, várias entidades e profissionais como eu estamos pleiteando a criação de uma forma de avaliação para conceder a carteira profissional. Equivaleria ao exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Com a multiplicação das escolas, essa medida é mais do que necessária. Não se pode autorizar o indivíduo que não está preparado a exercer a medicina.

ISTOÉ - O sr. lançou há pouco o livro Cartas a um jovem médico - uma escolha pela vida. Qual é o recado ?

Jatene - Quis lembrar que a medicina é uma profissão peculiar. Não trata das coisas que as pessoas têm. Trata da pessoa. Não pode ser um negócio, não é um meio de enriquecer, de conquistar posição social. Pode acontecer, mas o seu objetivo é ajudar pessoas que sofrem.

ISTOÉ - Há uma crise de valores?

Jatene - Na minha avaliação, o mundo globalizado e tecnológico trouxe muitos benefícios, mas trouxe grandes prejuízos. O maior é que as pessoas passam a se movimentar por interesse, esquecendo valores universais como ética, honra, lealdade, gratidão, amizade, honestidade, que ficaram quase em segundo plano. E isso não pode ser aceito em uma profissão como a medicina. O médico não faz algo porque aquilo irá beneficiá-lo. Ele faz porque vai beneficiar o doente.

ISTOÉ - Quais as conseqüências para a relação médico-paciente?

Jatene - É um grande problema. No passado, o diagnóstico dependia do conhecimento do profissional, que buscava sintomas e sinais físicos, detalhandoos com cuidado. Na medida em que a tecnologia foi incorporada, a qualidade do diagnóstico melhorou muito. Mas recorre- se mais do que o desejável aos métodos de diagnóstico por imagem, por exemplo. Isso reduz o tempo que o médico conversa com o doente. Assim, o risco de abusar da tecnologia é fazer o diagnóstico baseado exclusivamente nos exames. E até tratar o exame, o que é uma distorção. Isso também tem influência no ensino médico. A divisão da profissão em 53 especialidades e em 54 áreas de atuação fragmentou o paciente. Diante de qualquer sintoma, o paciente vai direto a um especialista, pois praticamente extinguimos os clínicos gerais (que agora queremos recuperar). Se acertar, tudo bem. Senão, vai de um especialista a outro. Temos de buscar é um médico capaz de atender a essas pessoas e encaminhálas. Nas faculdades, essa preocupação já aparece na hora de decidir o conteúdo das matérias.

ISTOÉ - Os recursos da saúde brasileira tendem a diminuir?

Jatene - Há um problema crônico de financiamento0. Hoje gastamos, em média, US$ 400 per capita. Metade desse valor vem dos pagamentos feitos à medicina suplementar. E apenas US$ 200 se referem a cada um dos 180 milhões de brasileiros atendidos pelo SUS. Países europeus aplicam US$ 2.000 per capita. Na Constituição de 1988, está previsto que a saúde deveria ser financiada com 30% do orçamento da Seguridade Social, o que não ocorre. Pouca gente sabe a origem desses recursos.

ISTOÉ - Poderia explicar?

Jatene - O orçamento da Seguridade é utilizado basicamente pelos ministérios da Previdência, Trabalho e Saúde. É composto da arrecadação da Previdência Social, do Cofins, do PIS-Pasep, da CPMF, de participações sobre o lucro líquido das empresas e da loteria. O governo, em tese, teria pouca possibilidade de modificar essa aplicação.

ISTOÉ - Como o governo reduz os recursos da saúde?

Jatene - O governo criou a Desvinculação dos Recursos da União, que permite destinar 20% desse dinheiro para outras áreas. Também as aposentadorias dos funcionários públicos da União passaram a ser pagas pela Seguridade. Foram dois golpes duros. Quando eu assumi o Ministério, em 1995, a Pasta tinha 22% da verba da Seguridade. Daí propus a CPMF para chegar nos 30% enquanto esperávamos a prometida reforma tributária, que não veio até hoje. Em 98, o recurso diminuíra para 18%. Hoje, não chega a 13%. Este ano, o orçamento é R$ 370 bilhões: 30% seriam mais de R$ 100 bilhões, mas a verba foi de R$ 46 bilhões. Percebeu a perda?

"Muitas escolas não têm hospitais para treinar estudantes. Isso prejudica a formação"


ISTOÉ - Há mais algum trâmite que afete as verbas da saúde?

Jatene - Sim, o descumprimento da Emenda 29, aprovada por influência do ministro José Serra. Ela determina que a União deve destinar o que aplicou no ano anterior e mais 5% sobre o crescimento nominal do Produto Interno Bruto. Os Estados, um mínimo de 12% e os municípios, 15%. Não é o que se vê. O governo federal, que era responsável por quase 70% dos recursos da saúde, dá apenas com 49%. E só sete Estados cumprem o mínimo constitucional de 12%. Em compensação, muitos municípios colocam mais de 15%. Porém, quando começa a melhorar o orçamento, a área econômica do governo introduz despesas novas.

ISTOÉ - Pode dar exemplos?

Jatene - O programa Fome Zero e o saneamento básico, que nunca foi do orçamento da saúde, embora tenha importância fundamental. Temos de corrigir esse esquema financeiro. A mudança começa por regulamentar a Emenda 29, ou seja, definir o que pode ou não pode ser colocado no orçamento da saúde.

ISTOÉ - Há alguma garantia de que a arrecadação reverterá para a saúde?

Jatene - Nenhuma. A única forma é acompanhar a execução orçamentária. Isso já é feito de alguma forma pelos conselhos municipais, estaduais e nacionais de saúde. Mas, como a nossa cultura é autoritária, nós não sabemos praticar o debate democrático para fazer reivindicações. Para isso acontecer, precisamos de mais honestidade intelectual. Só quem é intelectualmente honesto pode admitir que o outro está certo. E assim vamos construindo um País.

ISTOÉ - Qual é o impacto dessa carência de recursos constante no SUS?

Jatene - Ele é o melhor modelo de atendimento à saúde do mundo, mas tem deficiências enormes. Uma delas é o subfinanciamento. Outra é a falta de leitos. Em um levantamento que fiz na cidade de São Paulo, apenas 11 distritos tinham mais de dez leitos por mil habitantes. E havia 39 distritos, como o Capão Redondo, com quatro milhões de pessoas sem nenhum leito. Por isso, hospitais e prontossocorros vivem sobrecarregados. Recentemente, foram inaugurados 16 hospitais em São Paulo, mas levaram mais de 20 anos para ser construídos.

ISTOÉ - Como o sr. cuida da sua saúde?

Jatene - Faço tudo o que mando os meus doentes fazer. Vê o terno que estou usando? Ele é de 12 de setembro de 1984 e ainda cabe. Eu mantenho o peso, tenho circunferência abdominal menor do que 100 centímetros, ando no clube, faço um pouquinho de musculação, controlo os exames, nunca fumei. E ajudo os outros. As pessoas devem entender que estamos em dificuldades e precisamos dar a nossa contribuição. Hoje, dois terços da população do planeta é pobre e não qualificada. Temos que voltar atrás e ajudar, porque é um ser humano com necessidades. Não adianta andar em carro blindado nem ter segurança. Temos de participar da solução. Veja que a responsabilidade social das empresas está crescendo. É por esse caminho que vamos sair do buraco. Nossa elite tem de se conscientizar disso e participar.

ISTOÉ - Qual é o futuro da cirurgia cardíaca?

Jatene - Eu desejo ardentemente que a doença coronária, por exemplo, seja resolvida com remédio. Estamos caminhando para isso. Veja o infarto: 30% dos pacientes morriam depois de chegar ao hospital. Aí se descobriram o mecanismo e um medicamento injetável que dissolve o trombo. Antes de duas horas, também se pode levar para o cateterismo, que desobstrui as artérias. Com isso, a mortalidade caiu para 3% a 5% e a perda muscular é muito menor. A próxima fronteira é recuperar o músculo. É o que se pretende com célula-tronco, mas ainda não há motivos para entusiasmo. Outro avanço é o ventrículo eletromecânico, um equipamento que faz o trabalho de uma parte do coração que bombeia o sangue. Trata-se de um projeto do qual participo no Dante Pazzanese. Já foi usado em um bezerro que viveu 15 dias caminhando e comendo. Agora esse ventrículo está praticamente pronto para ser testado em corações humanos.


Fonte: Revista IstoÉ de 16/07/2007

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