A sustentabilidade dos planos de saúde e a gestão técnica de sinistralidade

Guilherme Augusto Murta

Medicina do Futuro ou Futuro da Medicina?

Quando os experientes e bilionários Jeff Bezos, Warren Buffett e Jamie Dimon1 entenderam, no início de 2018, que os custos de saúde estão ascendentes e cada vez mais insustentáveis, viram como oportunidade para enfrentamento do problema a criação de uma empresa de saúde. Com isso, houve a forte evidência que os desafios ultrapassaram o âmbito no qual até então eram discutidos pelos estudiosos da área em saúde alcançando a atenção e preocupação explícita do setor econômico.

Não é por menos. Para ter ideia da dimensão do problema, as forças militares2 dos EUA, reconhecidas pelos investimentos bélicos, gastaram em 2016 a quantia de 611 bilhões de dólares. No mesmo período, o custo do sistema de saúde americano ultrapassou os 3 trilhões de dolares3. Ainda naquele ano, os custos do sistema de saúde norte americano, per capta, foram estimados em 10.348 dólares. Em comparação, os países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico(OCDE) totalizam, em média, apenas um terço deste valor4.

Mas a dificuldade de sustentabilidade do sistema de saúde não é exclusiva dos americanos. O cultuado National Health System(NHS), do Reino Unido, enfrenta crise de aumento de demanda de atendimentos, a qual não foi acompanhada pela adequada estruturação5, sendo relatado inclusive pacientes entrando em óbito nos corredores dos serviços de saúde enquanto esperam por internação6.

No Brasil encontramos problemas complexos e cenários variados. Há plano de saúde generoso que custa quase 100.000 reais per capta ao ano7. Existe também empresa que conta com operadora de saúde em modalidade autogestão que custa o correspondente a 10% do faturamento do negócio (custo de 1.8 bilhão de reais)8.

Enquanto a inflação nacional mostra-se abaixo dos dois dígitos, o último dado de inflação médica (VCMH) disponível atingiu 20,4% (referente a 2016). Em comparação, no mesmo período, o IGP-M estava em 2,95% e IPCA de 6,29%. Ao comparar estes números, projetando para o futuro, verificamos que a correlação de VCMH / IGP-M forma uma curva exponencial, o que é claramente insustentável (gráfico)

O modelo de remuneração Fee for Service (FFS), predominante no Brasil, é claramente ineficiente. Neste modelo, a remuneração do profissional de saúde e dos serviços baseia-se unicamente na utilização. A qualidade não é levada em conta. Por exemplo: O médico que realiza quatro atendimentos por hora (consultas de 15 minutos) é menos lucrativo financeiramente do que o que realiza 6 atendimentos por hora (consultas de 10 minutos) e menos ainda que aquele que consulta 12 por hora (consultas de 5 minutos). Enquanto isso, o fator qualidade por consulta não é considerado para fins de honorários. Em relação a serviços hospitalares, esta lógica também prevalece. Ao ser internado para ser operado o hospital é remunerado. Se não houver complicações posteriores não há mais remuneração hospitalar. Por outro lado, se o caso complicar e forem necessárias outras intervenções decorrentes do procedimento original há as respectivas e devidas remunerações. Outros modelos de remuneração possíveis (pay for performance, shared savings, prospectively paid bundles, shared savings, capitation) não têm encontrado terreno fértil para desenvolvimento no país sendo pouco frequentes em saúde suplementar.

A população no Brasil também está progressivamente envelhecendo. Na população com planos de saúde privados, estudos apontam que este envelhecimento é ainda mais rápido em comparação com a população geral9. É sabido que o avanço na idade também acarreta em crescimento dos gastos com saúde. Isto é ainda mais acentuado quando não há o devido cuidado preventivo da população, não havendo estratégias epidemiológicas eficientes para redução de fatores de risco para desenvolvimento de doenças (sedentarismo, tabagismo, excesso de peso) nem para o acompanhamento de saúde de pessoas com doenças crônicas na tentativa de aderirem ao adequado tratamento. Estas condições sinergicamente conduzem a uma demanda progressiva dos serviços de saúde focados na terapêutica de situações complexas e dispendiosas.

Os avanços tecnológicos também devem ser colocados em prática em benefício aos pacientes. Entretanto, esta avaliação deve ser criteriosa e baseada em evidência para não cair em modismo que pouco ou nada acrescenta para o tratamento eficiente dos doentes. Além disso, deve haver esforço para que as soluções sejam sustentáveis. Nos EUA as novas tecnologias corresponderam a 48% do aumento relacionado ao custo de saúde entre 1960 e 200710. No Brasil também sofremos reflexos com a progressão tecnológica. Em 2018, o Rol ANS tem projeção de aumento de 1,43% da despesa assistencial estimada para o ano11. Assim, se por um lado há uma exigência quanto a cobertura de novos códigos (procedimentos, medicações, tecnologias) de forma progressiva, ano a ano, do outro lado, há a necessidade de contingência de custos em relação a cobrança das mensalidades dos beneficiários.

Há ainda que considerar a cultura da população quanto ao atendimento médico. Não é raro o entendimento de que o atendimento médico especializado, ao invés do generalista, é visto como prestação de serviços de melhor qualidade. Entretanto, a visão integral do paciente (tecnicamente ideal) e a possibilidade de atendimento de todas as faixas etárias e gêneros tem despertado atenção sobre a possibilidade de que o médico de família (especialista em atenção primária à saúde) seja a porta de entrada(gatekeeper) no sistema de saúde suplementar. Estudos apontam que o médico de família tem resolutividade acima de 85% dos casos atendidos12,13. Outro entendimento popularmente comum é que a solicitação de vários exames durante as consultas médicas corresponde a uma demonstração de cuidado ao paciente. Entretanto, isto nem sempre é verdade. Os exames são COMPLEMENTARES à consulta médica, sendo a clínica (anamnese e exame físico) soberana. A solicitação de exames desnecessários (não baseado em evidências cientificas) pode culminar no overdiagnosis e overtreatment; ou seja, as possíveis consequências pseudoterapeuticas podem resultar em dano (iatrogenia) desnecessário ao paciente14,15.

Assim, não havendo alteração deste cenário para o futuro, a conjunção destes fatores (VCMH, modelo de remuneração questionável, perfil populacional mais dispendioso, aumento progressivo do Rrol ANS, foco exclusivo em atendimento médico especializado e muitos exames) tendem formar uma equação cujo resultado é insustentável para a saúde suplementar no Brasil, podendo inclusive colapsar.

Alguns sinais desta possibilidade estão se tornando realidade. No primeiro trimestre de 2017, enquanto 22 registros de operadoras foram cancelados apenas 11 foram criados16. Estes resultados negativos têm se repetido nas últimas séries históricas. Além disso, planos de pessoa física (inflação máxima anual regulada pela ANS) têm sido cada vez menos disponíveis, em especial nas operadoras de melhor qualidade e abrangência17,18. Planos de saúde disponibilizados por intermédio de pessoa jurídica(planos empresariais) ainda têm maior viabilidade, pois a sinistralidade resultante é cobrada pela empresa contratante. Mesmo assim, como as mensalidades dos planos empresariais seguem aumentando anualmente, também estão ficando inviáveis para muitos empresários.

Para estes desafios não há solução pronta e certamente não há solução fácil. Mas já é um começo saber o que não funciona e buscar alternativas. O certo é que há opções e oportunidades, especialmente para profissionais tecnicamente preparados, em construir um futuro com melhores perspectivas para a saúde suplementar.

Artigo escrito pelo médico Guilherme Augusto Murta (CRM-PR 24.287), especialista em Medicina do Trabalho e presidente da Associação Paranaense de Medicina do Trabalho (APAMT).

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Referências:


1 - Disponível em http://money.cnn.com/2018/01/30/news/economy/health-care-costs-eating-the-economy/index.html
2 - Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_ por_gastos_militares 2
3 - Disponível em https://www.thebalance.com/causes-of-rising-healthcare-costs-4064878 3
4 - Disponível https://www.pgpf.org/chart-archive/0006_health-care-oecd 4
5 - Disponível em https://www.theguardian.com/society/2018/apr/02/nhs-is-facing-year-round-crisis-says-british-medical-association
6 - Disponível em https://www.independent.co.uk/news/health/nhs-winter-crisis-latest-hospitals-full-patients-figures-jeremy-hunt-news-updates-a8189066.html
7 - Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/lucio-vaz/2018/03/27/medico-no-exterior-e-ambulancia-aerea-conheca-o-generoso-plano-de-saude-vitalicio-senado/
8 - Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/funcionario-dos-correios-contribuira-com-plano-de-saude-decide-tst.shtml
9 - Disponível em http://www.ans.gov.br/images/stories/Particitacao_da_sociedade/lab_dides/Martha-Modelos-de-Remuneracao-LABDIDES-03-05-16.pdf
10 - Sheila Smith, Joseph P. Newhouse and Mark S. Freeland. Income, Insurance, And Technology: Why Does Health Spending Outpace Economic Growth? Health Affairs 28, no.5 (2009):1276-1284. doi: 10.1377/hlthaff.28.5.1276
11 - Confederação Nacional da Indústria. Análise de impacto orçamentário: tecnologias incorporadas pelo rol de 2018 da ANS. Confederação Nacional da Indústria, Serviço Social da Indústria. - Brasília: CNI, 2018. 153 p.: il.
12 - Ademir Lopes Junior. Rev Med (São Paulo). 2012;91(ed. esp.):39-44. Disponível em https://www.revistas.usp.br/revistadc/article/viewFile/59009/61997
13 - Disponível em https://istoe.com.br/209067_HA+EXCESSO+DE+EXAMES+/
14 - Disponível em http://www.lessismoremedicine.com/
15 - Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4758471/
16 - Disponível em https://iessdata.iess.org.br/dados/nomh
17 - Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/plano-de-saude-individual-mais-raro-caro-15848792
18 - Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/dino/maioria-dos-planos-de-saude-nao-vende-para-pessoas-fisicas-por-que-isso-acontece,86fcdd9a687d81dae757139e1cab7cbczvv2tmzc.html

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