Aprimoramento médico pós-graduado

"Quando se tem um barco nas mãos que obedece a cada um dos dedos, e um oceano em cada direção, sonhar é perder tempo. É melhor tomar um caminho"

Amyr Klink, 1992



A multimídia apresenta surtos paroxísticos de críticas à criação exagerada de escolas médicas e à deficiente formação profissional. Depois de reiteradas crises, os episódios se amainam e as medidas propostas para sanar o mal caem no vazio. Até a quarta década do século passado havia um número exíguo de escolas médicas no País. A quantidade de vagas anuais era pequena em vista do volume de candidatos e a sociedade se ressentia da falta de profissionais dedicados à assistência à saúde. Disso resultou a designação de "excedentes" para caracterizar os aprovados nos exames vestibulares para os cursos médicos que não conseguiam encontrar um lugar ao sol. O clamor era intenso e generalizado.

O interesse das autoridades em contornar o impasse e o empenho dos políticos e administradores deram margem à criação desenfreada de escolas médicas sem um planejamento que respondesse à existência de recursos financeiros, à formação de corpo docente qualificado, às conveniências geográficas, mas, sobretudo, à infra-estrutura hospitalar, componente indispensável para um empreendimento dessa envergadura, quando se deseja proporcionar ao aluno ensino-aprendizado de bom nível no ciclo clínico a fim de prepará-lo para a vida profissional. Acresce que a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1993, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determina em seu artigo 53 que as universidades, no exercício de sua autonomia, têm assegurada a criação de cursos e programas de educação superior, o que causa ao Ministério da Educação (MEC) sensíveis óbices para refrear o descabido abastardamento do ensino médico.

Há uma dezena de anos escrevemos um artigo sobre o tema no Estado, intitulado Qualidade em vez de quantidade. Porém pouco ou nada se alterou até hoje. Ao contrário, as universidades privadas, cientes de que o ensino é uma fonte de renda, não titubeiam em aumentar suas reservas financeiras à custa das mensalidades pagas por seus alunos, abrindo as portas a novos pretendentes. Não que sejamos avessos à atuação da empresa privada no desenvolvimento do ensino. Ela presta importante apoio ao dever governamental, mas sua atuação na área da saúde se restringe a atividades básicas que dependem de salas de aula e de laboratórios. Quando se passa para o ciclo clínico, que carece de ambulatórios e de hospitais, as coisas se complicam. Adib Jatene, quando ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, disse que inaugurar uma usina hidrelétrica é um acontecimento alvissareiro, porque no dia seguinte ela começa a produzir lucros, enquanto a inauguração de um hospital público implica o imediato compromisso com o pagamento de despesas. A dificuldade que as instituições privadas de ensino de ciências da saúde sentem é edificar ou adquirir um hospital assistencial e arcar com os gastos para sua manutenção.

Há cinco anos foi criada a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação das Escolas Médicas (Cinaem), com a finalidade de inventariar o ensino médico no País e propor meios para regulamentá-lo e à própria profissão médica. No entanto, a entidade, não tendo poder decisório, não obstante seus desígnios, pouco tem obtido na prática. Durante sua curta existência foram criadas outras 20 escolas médicas.

Sendo tão difícil coibir e disciplinar a abertura de mais cursos médicos, em que pese o fato de já termos ultrapassado os índices recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a proporção médicos-habitantes (8/10.000), há que encontrar meios para proporcionar um aprimoramento pós-graduado aos egressos da graduação de tais cursos com deficiência acadêmica. Poucos hospitais públicos não-universitários, com possibilidades de se engajarem nessa missão, preenchem um espaço ocioso, acrescentando à atividade assistencial importante papel no ensino e na pesquisa em ciências da saúde. Esse mister, sobre ser benéfico para a divulgação de conhecimentos específicos, é um marcante estímulo para a constante reciclagem do pessoal envolvido, o que resultará em melhoria dos padrões assistenciais. O Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo vem cumprindo esse propósito, proporcionando assistência de alto nível a seus usuários, ao mesmo passo que atua como centro de aprimoramento pós-graduado na área da saúde. É um exemplo a ser seguido.

Os integrantes dos Ministérios da Saúde e da Educação devem atentar para esses fatos, oficializando e regulamentando o uso da rede pública de hospitais não-universitários para o aprimoramento pós-graduado. Para isso é preciso que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que de modo elogiável se empenha em estimular a pesquisa, conceda maior atenção à formação do professor de nível superior, porque o País carece muito dos que se ocupam da produção de conhecimentos novos, bem mais que daqueles que se incumbem da sua divulgação. Flávio Fava de Moraes, ex-reitor da USP e ex-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), assinala opinião semelhante quando afirma que o desequilíbrio entre as três missões universitárias, com franco favorecimento para a pesquisa, merece urgente análise. "Não se trata de diminuir o relevante mérito da pesquisa, mas, ao contrário, de resgatar o valor do ensino e da extensão." Em muitos setores do ensino superior há marcante carência de docentes com titulação acadêmica. Tal fato ocorre de maneira incisiva na área das ciências da saúde.


Fábio Schmidt Goffi, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, é diretor do Cedep do Complexo Iamspe-HSPE

E-mail: fabiogoffisp@ terra.com

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