As chagas de nossa saúde

Dentre as embromações com que os governos têm maltrata-do o povo brasileiro a que mais me inconforma é a que medra na área da saúde, a mais descuidada, relegada e abandona-da, em que pese a mais bramida nas promessas eleitoreiras.

Talvez por ser a "porção que me cabe neste latifúndio" como médico e diretor de hospital, sinto uma incontida revol-ta toda vez que se propala os sucessos de um setor deficien-te e incapaz, no propósito específico de atender o homem em seus sofrimentos físicos.

O assunto é vasto, pleno de arestas e por demais corren-te nos meios de comunicação, sem chegar jamais ao âmago da questão, no evoluir de nossas permanentes mazelas. Notícia deste jornal, em sua edição de 31 de agosto, dá conta de 16 hospitais, somando 2.449 leitos, impossibilita-dos de prosseguirem por absoluta falta de recursos. Estabe-lecimentos situados em área próspera de nosso estado, Lon-drina, Maringá, Rolândia, Umuarama, mas como os demais, sujeitos às diárias e tabelas impostas pelo Sistema Único de Saúde, SUS, famigerada sigla que, desde a sua implantação desativou mais de cem hospitais e afastou milhares de médi-cos, insultados por uma consulta de dois reais e cinqüenta centavos, 10% a menos que um corte de cabelo.

Não pensem, todavia que esse sistema, referência absur-da de nossa cultura médica nasceu com o propósito malé-volo de arrasá-la a ponto de envergonhar todos os que se envolvem na área.
Ele surgiu com pompa e circunstância ao respaldo da Constituição Federal de 1988, regulamentada pela Lei Or-gânica da Saúde com a finalidade de alterar a situação de desigualdade na assistência à Saúde da população, tor-nando obrigatório o atendimento público a qualquer cida-dão, sendo proibidas cobranças de dinheiro sob qualquer pretexto.

"0 SUS é destinado a todos os cidadãos e é financiado com recursos arrecadados através de impostos e contribui-ções sociais pagos pela população e compõem os recursos do governo federal estadual e municipal.

O Sistema Único de Saúde tem como meta tomar-se um importante mecanismo de promoção da eqüidade no atendi-mento da saúde dos brasileiros, ofertando serviços com qua-lidade adequada às necessidades, independentemente do poder aquisitivo do cidadão."
Tal como um candidato em palanque eleitoreiro, o SUS tudo prometeu e nada cumpriu. E não cumpriu porque, não pôde, não poderia, nem pode. Não sei se existe nação no mundo capaz de tal milagre: oferecer assistência médica gratuita "com qualidade adequada" a toda a população.

Algum vírus deveria estar fazendo artes nas circunvo-luções cerebrais dos autores dessa macrogenerosidade, a espantar os demais habitantes do planeta, com uma idéia criada em uma nação de terceiro porte. Poderia a socieda-de de um pais, cuja pobreza é notória em todos os quadran-tes que se avista: na carência das periferias, nas favelas, nos meninos de rua, nos roubos, nos assaltos, nos parâme-tros da classe média, arcar com os elevados padrões dos atendimentos de hoje? Anteriormente o instrumento do médico era o termômetro, no meu tempo o aparelho de pres-são, e a medicina obviamente, barata. As consultas varia-vam de 10 mil a 20 mil réis com receita de poções, xaropes, ungüentos, cápsulas, manipulações que não chegavam ao preço do doutor.

O SUS tem 18 anos, e nesse tempo, a ciência médica evo-luiu tão grandiosamente que a fantasia sonhadora de seus propósitos desemboca nessa Hidra de Lema à procura de um Hércules salvador, personagem heróico da mitologia grega.

Em 4 de maio deste ano, o SUS, pela Portaria n.o 971 do Ministério da Saúde, autorizou o uso da acupuntura, homeopatia, fitoterapia, termoterapia, medidas alternati-vas de terapêutica. Os acupunturistas e homeopatas, embo-ra não médicos, podem diagnosticar, prescrever e realizar tratamento em suas especialidades devidamente reconhe-cidas. Mas os demais não fazem jus à equivalência de grau superior. Uma resolução que deixou rastros de protesto e indignação no ajuizamento de eminentes autoridades nacio-nais. Apesar dos benefícios passíveis de prestar como fato-res acessórios, não se deve esquecer a porta que se escan-cara para curandeiros e benzedores, classe em extinção capaz de renascer com todos os prejuízos e ignorâncias que. expandem. Nas entrelinhas, uma confissão de incompetência do sistema a forjar mais uma farsa para a amenização da plebe rude.

O SUS mantém procedimentos de alta complexidade, envolvendo cirurgias cardíacas, hemodinâmica e transplan-tes, isentos de prejuízos desde que evoluam sem intercorrên-cias aditivas. Mas os termos do compromisso inaugural extrapolando a todas as expectativas e a falta de recursos deflagrando a baixa remuneração, médicos e hospitais pas-saram a não receber "os doentes do SUS" ou no caso de atendê-los, fazendo-o mal.

Existe uma parcela de doentes que o SUS não atende. Eles aparecem queixosos e desolados no Hospital Univer-sitário da Cruz Vermelha, onde são assistidos com "qualida-de adequada" quarto ou apartamento, uma vez que não dis-pomos de acomodações discriminatórias. Doente internado é doente bem tratado. Uma sistemática que devo à boa von-tade de um corpo médico e paramédico atento aos deveres da instituição que por ela veste a camisa fiel aos seus prin-cípios de humanidade, imparcialidade e neutralidade.



LAURO GREIN FILHO é presidente da Cruz Vermelha e do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

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