18/10/2006

As profissões: 3 - Os médicos

NO QUARTO em torno do paciente, filhos e esposa esperam o doutor. Ele opera cedo, depois visita pacientes. Entra como um deus simpático e poderoso, jaleco condecorado com as insígnias do hospital famoso, bronzeado e sorridente. "Como vai nosso paciente?" Dormiu agitado, dor nas costas, alergia ao remédio. Belisca as bochechas do doente, "Mas está muito melhor, rosado, pressão normal e a temperatura baixou".

Sorrisos reconfortados. O doutor apalpa e diz para a enfermeira: "Veja o que ele quer para almoço. Já pode comer com sal." Sai rápido, o filho mais velho atrás para saber a verdade na conversa do corredor- poucas chances de recuperação e sobrevida que não vale a pena.

No hospital de excelência, os melhores médicos do mundo, os equipamentos mais modernos. Aqui o desafio é morrer. Ciência, equipamentos e drogas impedem que a morte chegue natural e humana. É atrasada inutilmente. Os filhos perdem pai, patrimônio e herança.

A medicina desvendou um segredo proibido do qual não consegue se desvencilhar -vencer a morte sem recuperar a vida.

Na sala dos médicos, vida e morte são assuntos triviais por dever de ofício. Conversam sobre rivalidades com os colegas, honorários e "investimentos" no doente. Investe-se com prejuízo porque ninguém mais sabe, nem médicos nem advogados nem os padres, como se livrar dos tubos e máquinas que atrasam a morte.

No hospital público, o médico chegou atrasado, a fila era longa. O paciente entra, acabrunhado e zangado com a demora. Senta-se à frente da mesinha do doutor, de jaleco branco amarelado. O doutor parece cansado, enfrentou trânsito para vir do outro hospital, muito longe, cabelo despenteado, olhar distante e desesperado. "O senhor tomou o remédio que eu receitei?"

Estava em falta, era caro, o hospital só recebe na semana que vem. Na semana que vem não consigo vir porque não tem ninguém para ficar com as crianças.

É um caso fácil. Mas caro. Exige repouso, o sujeito tem família, não consegue internação, não pode pagar o tratamento que o governo não consegue dar para todo mundo. O médico examina, faz outra receita e pede novos exames e nova consulta, o que deve levar mais um mês.

O médico sai correndo para outro hospital, tentando recompor a camada de indiferença e distância, perfurada por mais este caso, preparando-se para o próximo. Falta dinheiro para a vida aqui, sobra dinheiro para a morte lá.


Fonte: JOÃO SAYAD: Folha de S.Paulo - 16/10/2006

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