15/10/2007

Até que enfim!

Escolas médicas sem a devida competência educacional representam grande perigo à saúde da sociedade brasileira


Raul Cutait



Até que enfim uma boa notícia para o ensino médico: o ministro da Educação, Fernando Haddad, acena com a possibilidade de o MEC intervir em faculdades de medicina e até mesmo fechar escolas, à semelhança de projeto que vem desenvolvendo com a OAB para faculdades de direito.

Tal fato merece algumas reflexões. No Brasil, houve uma intensa proliferação de faculdades de medicina nas ultimas décadas: de 70, em 1970, para quase 170 em 2007. Somos hoje, em número, o segundo país no mundo, perdendo apenas para a Índia, com 220 escolas médicas.

Apesar de nossa população ter dobrado nesse período, não se justifica jogar no mercado de trabalho mais 10 mil novos médicos por ano não há como absorver essa oferta. A abertura de novas faculdades vem ocorrendo não em razão da necessidade de profissionais ou para criar pólos de desenvolvimento médico em determinadas regiões do país, mas em decorrência de pressões políticas e interesses comerciais.

No atual cenário, existem faculdades que não cumprem o sagrado compromisso de dar uma boa formação para seus alunos em decorrência da falta de professores qualificados e/ou de hospitais próprios ou conveniados para o imprescindível treinamento prático. Ora, escolas médicas sem a devida competência educacional representam um grande perigo para a saúde da sociedade brasileira, pois colocam no mercado profissionais com preparo aquém do desejável.

O excesso de faculdades de medicina cria um outro problema, também de extrema gravidade, que diz respeito à residência médica. Esta, que demanda de dois a cinco anos, é etapa essencial na formação do médico. No presente, existem pouco mais de 6.000 vagas para residência médica (e nem todas devidamente qualificadas). Logo, pelo menos um terço dos médicos vão para o mercado sem a devida complementação técnica.

A abertura indiscriminada de faculdades de medicina faz mal ao país. Primeiro, é um desrespeito para com os alunos oferecer lhes ensino médico de nível sofrível. Segundo, os médicos mal preparados terão maiores chances de conduzir seus casos de forma inadequada. Finalmente, o excesso de médicos e sua má distribuição pelo país, fruto de más condições de trabalho, inibe a valorização dos profissionais e faz com que a categoria seja hoje remunerada de forma aviltante. Como conseqüência, cerca de 75% dos médicos atuam em três ou mais empregos e têm dificuldades para reciclar seus conhecimentos.

As soluções existem, mas não são simples. A proposta levada ao presidente do Congresso Nacional de restringir a abertura de novas escolas por um período determinado é bem vinda e ameniza um problema que não vem merecendo a devida consideração dos últimos governos federais, embora possa ser injusta para universidades que tenham interesse em estabelecer novos cursos de alto padrão. Contudo, o foco principal deve ser a correção das distorções existentes.

Os EUA viveram no passado um problema semelhante, que culminou com o fechamento de um grande número de escolas médicas em 1929, fundamentado no relatório Flexner. A conseqüência foi uma tremenda melhoria do ensino médico como um todo naquele país.

É imperativo que sejam tomadas medidas drásticas no Brasil em relação ao ensino médico. Inicialmente, a abertura e a manutenção das escolas existentes devem passar pelo crivo das necessidades locorregionais e pela existência de mais vagas para residência médica.

Em segundo lugar, é fundamental que sejam definidos e implantados critérios técnicos para regular tanto o funcionamento quanto o fechamento das escolas existentes. Essa tarefa hercúlea e corajosa não deve ser conduzida só pelo governo. Dela devem participar segmentos representativos da sociedade afeitos à medicina e a seu ensino, em especial a comunidade acadêmica e as entidades médicas.

Gradativamente, o Brasil vai equacionando o acesso da população às atenções de saúde e entrando em uma nova era, em que o desafio é a qualidade dos serviços de saúde oferecidos, que passa pela competência dos médicos. Sem uma mudança radical que permita manter e estimular as melhores faculdades de medicina e, simultaneamente, eliminar as desnecessárias e menos competentes, o sistema de saúde brasileiro, por mais moderno e modelar que seja, não conseguirá propiciar o atendimento digno que cada cidadão merece.

Raul Cutait , 57, cirurgião gastrenterologista, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, membro da Academia Nacional de Medicina e presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (gestão Paulo Maluf).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
debates@uol.com.br


Fonte: Folha de S.Paulo

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