Células-tronco: a encruzilhada entre a ciência e a fé

As tecnologias provenientes das células-tronco possuem potencial de modificar tanto a maneira com a qual nós tratamos as doenças, quanto a forma de como compreendemos a vida. Dessa maneira se expressou Débora Spar, pesquisadora da Universidade de Harvard, em editorial recente publicado na mais importante revista médica do mundo.

A pesquisa com células-tronco vem sendo colocada na imprensa leiga e científica ou mesmo na internet como o grande avanço para a descoberta de tratamentos efetivos para doenças degenerativas como o diabetes, a insuficiência cardíaca, o mal de Parkinson, o Alzheimer ou para a recuperação de traumas medulares. É preciso, por outro lado, lembrar que são avanços potenciais, ou seja, que podem ocorrer para algumas áreas e os seus limites e efeitos indesejados ainda são desconhecidos. Não é demais recordar que em medicina científica não existe panacéia que trate todos os males.

A ciência não evolui através do otimismo fácil ou do entusiasmo dos pesquisadores e da sociedade, mas através da superação de contrastes e de paradigmas. Para Popper, não conseguimos efetivamente comprovar uma hipótese científica, mas conseguimos desmenti-la. É a sua tão difundida teoria da falseabilidade, que faz (ou deveria fazer) de nós pesquisadores ao mesmo tempo críticos e ponderados em nossas afirmações. A verdade científica é passageira e nós sempre nos orgulhamos disso.

A verdade teológica, por outro lado, é proveniente da revelação divina. Perene e dogmática em suas colocações. As grandes religiões desde sempre têm se posicionado de maneira contrária ao relativismo moral, à perda do senso de família, à dessacralização da vida e ao uso de alguns seres humanos em detrimento de outros.

O embrião humano, sem nenhum estatuto ontológico ou jurídico até hoje que o proteja, é considerado para alguns um amontoado de células e, portanto, um objeto disponível. Para outros, é um ser humano em fase inicial e que merece o mesmo respeito e proteção jurídica dado aos outros seres humanos. Uma terceira via defende que o embrião deve ser protegido conforme o grau de desenvolvimento em que se encontra. Dentro deste último ponto de vista, apenas os embriões em fase precoce poderiam ser utilizados nas pesquisas.

A ciência aprendeu algumas lições bastante duras nos últimos anos. A aplicação prematura da terapia gênica provocou a morte de alguns voluntários sadios nas pesquisas. Também foram graves as conseqüências médico-legais da transmissão do vírus da Aids e da hepatite C através de transfusões de sangue e da encefalopatia espongiforme (a doença da "vaca louca"), que provocou a morte de seres humanos e de animais. Dentro desta perspectiva de risco, um único clone de células-tronco pode ser empregado em centenas ou milhares de pacientes, amplificando em progressão geométrica a transmissão de doenças que vimos até hoje em progressão aritmética com outras tecnologias. Muitas destas doenças, de origem viral, em príons ou predisposição genética a tumores, ainda não possuem testes específicos.

As células-tronco embrionárias produzem teratomas em animais de laboratório. Estes são tumores, em sua maioria benignos. Todo novo fármaco descoberto inicialmente é testado em animais de laboratório. Caso este produza tumores (benignos ou malignos) nestes animais, o mesmo então é automaticamente descartado e não será utilizado para pesquisa em seres humanos. É pesquisa considerada antiética, onde o risco pode ser maior do que os potenciais benefícios. Além disso, em oncologia, as células-tronco vem sendo estudadas como as responsáveis, junto com outros fatores, pela resistência dos tumores aos tratamentos quimioterápicos e à sua agressividade. Portanto, nem tudo o que estas células produzem pode ser considerado como positivo.

Por outro lado, as pesquisas com células-tronco adultas, não de origem embrionária, têm apresentado resultados promissores em diversas doenças e os riscos que envolvem o uso destas células em seres humanos parecem menores. Não enfrentam a resistência do organismo, a possibilidade de transmissão de doenças ou a oposição teológica. As maiores dificuldades encontram-se ainda na sua identificação e cultivo.

Assim, antes mesmo de colocarmos à prova os dogmas teológicos (se é que isto é possível), precisamos vencer etapas científicas importantes e que não serão resolvidas em poucos anos. Parece, para alguns, que a grande barreira para todo o progresso está na religião ou na maneira de como iremos enquadrar o embrião na nossa sociedade e no direito. Entretanto, são estas mesmas células que nos apresentam as esperanças e as ilusões da tecnologia a nos colocar as barreiras da prudência científica. Cientistas, teólogos, filósofos, bioeticistas e juristas devem estar atentos para não transformá-las nas tragédias anunciadas da imprudência e do imediatismo, que tantas vezes se repetiram na história da humanidade.

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