Comerás o pão com o suor do teu trabalho

Como roubar médicos



Algo de perverso, e na contramão da responsabilidade civil, está aparecendo na sociedade brasileira e que merece profunda reflexão. Uma nova classe de doentes está surgindo, sem inscrição no Código Internacional de Doenças e sem agente infeccioso específico como causa, acometendo gente pobre e gente milionária, e que está causando, por sua vez, reboliço e coçar de bigodes na classe médica. Como e quando apareceu é impossível precisar. Parece estar associada com as espalhafatosas e malconduzidas notícias televisivas, em que colocam o médico como culpado pelas mazelas sociais do país, apontando como erro médico até a falta de novalgina nos hospitais.


A verdade é que tais pacientes, neurotizados pelas agruras da vida, órfãos de políticas e políticos saudáveis e atarantados por tantas desgraças e malfeitos noticiados nas televisões, absorvem todas as neuras e desatinos possíveis e rumam para os consultórios médicos. Se vão bem-intencionados ou não, é o que descobriremos nestas linhas. O que vão procurar, na maioria das vezes, não é uma consulta/cirurgia médica aliviadora e curativa. No início, parecem simples cordeirinhos, dispostos a obedecer todos os sagrados mandamentos médicos. Mil juras de amor no doutor, mesuras com as secretárias e etc... Quando alguma coisa não dá certo ou complica (o que é muito normal na prática médica, pelas inúmeras variáveis envolvidas), aí aparece o lobo dentuço e de olhos fumegantes na procura de um chapeuzinho vermelho, ou melhor dizendo, de um esculápio vestido de branco. Já chegam ao consultório, apontando o dedo no rosto da secretária, contaminando as salas de espera com palavras cheias de fel e ressentimento, e numa impaciência desalinhada. Alguns chegam até com ameaças físicas contra as funcionárias, quando a delicadeza destas aconselham um relaxamento antes de chegar ao médico.


Adentrando os consultórios, esquecem das mil juras de amor e destilam venenos por todos os poros, sem se importar onde estão e com quem estão. Já se esqueceram até do que foram fazer lá. Exigem milagres imediatos, sob pena de "irem até as últimas consequências". Saem batendo portas, sem nenhuma despedida fraternal, e entram no primeiro escritório de advocacia de qualquer esquina. Inventam toda uma fanfarronada, exigindo milhões de indenização.


"Erro médico", é o que gritam, com amplo estufamento das veias do pescoço. "Olha só o que aquele açougueiro fez comigo", e assim por diante...

Está formado o angu de caroço. Os advogados, na maioria sedentos por uma boa causa, entram de corpo e alma, impensadamente, na onda e na fantasia do fulano; e levam até o juiz, entulhando ainda mais a entulhada e morosa Justiça, toda uma enorme quantidade de besteiras, falácias e documentos anêmicos. E na maioria absoluta das vezes, como provam as estatísticas, o erro médico não existiu, para ampla tristeza do doente e do causídico. Simplesmente porque Medicina não é ciência matemática; é ciência onde o profissional deve colocar todos os meios de cura para favorecer o ser humano, além de uma ética e uma responsabilidade gigantescas.


Recentemente, recebi uma notícia bem pertinente com estas linhas: um médico processou um cliente por desrespeito à funcionária e por palavrões obscenos na sala de espera. O cliente, além da chateação nos corredores judiciários, pagou muito caro pela inobservância das normas de seu próprio convênio.


Um outro fato: uma senhora, com advogado e tudo, entrou na Justiça, requerendo polpuda indenização por um erro médico que não existiu. Antes do processo ser julgado a cliente fugiu da cidade, em perseguição policial por enorme estelionato no comércio. Atenção e cautela a todos aqueles que querem ganhar dinheiro sem suor no rosto, trilhando o caminho da deslealdade e da ingratidão, e baldos de decência nas intenções, porque roubar médicos tem gigantescas complicações.



Artigo escrito pelo médico oftalmologista Renzo Sansoni, CRM-MG 8.772.

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