28/07/2021

Como ações médico-sociais podem salvar e melhorar vidas e criar metas de futuro às crianças

Pediatra faz relato de jornada de décadas de luta contra a violência, o descaso, o preconceito e o abandono na infância, drama que aflige a sociedade. Seu exemplo é exaltado com a distinção da Medalha de Lucas

A Medalha de Lucas – Tributo ao Mérito Médico será conferida em 2021 à pediatra Luci Yara Batista Pfeiffer (CRM-PR 4.646) em reconhecimento ao seu trabalho em prol das crianças com deficiência ou em situação de risco de violência, missão que abraçou ainda no meio acadêmico, antes de concluir a graduação pela Universidade Federal do Paraná, há 45 anos. A pediatra vai se juntar a outras 17 pessoas que formam o rol de distinguidos com a comenda, criada em 1996 e que visa reverenciar médicos com destacada atuação em prol de causas sociais e humanitárias.

A comissão julgadora escolheu a médica nascida em Curitiba dentre grupo de 25 renomados personagens da Medicina paranaense. A premiação ocorre em meio aos festejos do Dia do Médico, em outubro, e terá como coincidência a homenagem a um irmão da Dra. Luci, o também pediatra Sérgio Pfeiffer (CRM-PR 3.142), que vai receber o Diploma de Mérito Ético-Profissional por estar completando 50 anos de formado com histórico exemplar. O Dr. Sérgio concentrou quase toda a sua carreira profissional em Paranavaí, no Noroeste do Estado, e se aposentou recentemente, retornando à Capital.

A Dra. Luci Pfeiffer recebeu a notícia da distinção pela medalha pelo conselheiro e ex-presidente do CRM-PR, Luiz Ernesto Pujol, que também pediatra participou de muitas das ações em defesa das crianças e adolescentes, como o desenvolvimento do projeto Dedica, hoje acolhido pela Associação Amigos do HC. Instada a rememorar um pouco da sua trajetória, a médica expressou gratidão a muitas pessoas que incentivaram ou participaram dos mesmos ideais de fazer o melhor para as crianças. E asseverou: “O sofrer das crianças por causas totalmente evitáveis sempre foi insuportável para mim”.

Para o presidente do CRM-PR, Roberto Yosida, a importância de reverenciar profissionais por seu papel médico-social reside na inspiração para que esses exemplos sejam seguidos, que novos caminhos sejam trilhados sob os princípios que regem a Medicina, como a virtude de beneficiar o próximo, do exercício da beneficência, da justiça e do respeito aos direitos e valores humanos. O conselheiro exalta a missão abraçada pela merecedora da titulação que remete ao Patrono dos Médicos e a nova visão que a sociedade mundial dirige neste momento à proteção da infância como construção de futuro mais humanístico.

Confira o depoimento da Dra. Luci Pfeiffer, sobre sua jornada na Medicina e o trabalho em prol da infância, que mostra também as dificuldades da assistência e o quanto mudou o cenário no período graças aos esforços coletivos. Contudo, seu relato de altruísmo mostra a extensão do problema, mas também o quanto é possível se fazer, de forma organizada, para amenizar o impacto do descaso com as crianças deficientes e a violência que as alcança de modo geral, com agravos e até mortes decorrentes da falta de diagnóstico ou mesmo da continuidade de tratamento ou de medidas de proteção.

SAIBA MAIS SOBRE A HOMENAGEM DA MEDALHA DE LUCAS, SEUS GANHADORES E QUEM É A DRA. LUCI. CLIQUE AQUI.

clique para ampliarclique para ampliarDr. Luci em três momentos. É referência em pesquisas e ações que envolvem a prevenção de violência contra crianças. (Foto: Arquivo)

DEPOIMENTO

“Existem felicidades que não se explicam e que a formação médica nos oferecem. Não são só de atos e atitudes que nos transformaram, que melhoraram algo, seja de condição de vida, de salário ou de projeção social. É aquela felicidade de ver alguém que ficou melhor por alguma intervenção sua. Essa de ver uma criança que passa a sorrir, que começa a ver metas para o futuro; um adolescente que começa a aprender é algo que não tem preço e a medicina nos permite isso.

Eu sempre tento ver que tem um efeito aquilo que eu faço. Entendo que medicina não é apenas aquilo que você aprende na faculdade, como cuidado, saber diagnosticar, poder encaminhar pra outros especialistas e acompanhar e tirar dor de um paciente, ainda mais na infância e na adolescência. Tudo isso é fantástico, mas quando a gente pode sair do consultório, ir mais além e levar o saber da saúde, do que ainda não se encara com uma doença. A violência é sim uma doença; junto com os acidentes, é a maior causa de morte no Brasil entre pessoas de 1 a 39 anos de idade. Muitas crianças morrem pela violência, por falta do diagnóstico médico; muitas vezes não só do diagnóstico que alguns fazem, mas da sequência das medidas de proteção.

Como história minha, gostei de começar a registrar algumas coisas, enquanto a memória me favorece lembrar. Fiz medicina pela UFPR e decidi pela pediatria, fazendo residência no Hospital Cruz Vermelha, de 1976 a 1977. Comecei então como pediatra, atendendo também sala de parto e recém-nascidos, num tempo onde as UTIs neonatais eram raras (só existia a do HC em Curitiba, com internamentos seletivos) e, os que necessitavam de assistência intensiva e aparelhos, em muitos casos, ficavam à mercê da sua sorte de conseguir um leito. Ou, ficavam ao seu azar; eram muitos e não faz tanto tempo.

Inconformismo talvez seja uma boa característica minha e, frente ao que via, me perguntava: o que acontece com essas crianças que ficaram sem a assistência que precisavam?

Certa vez tentei conversar com um pediatra antigo, que se dizia experiente, responsável por um berçário importante de Curitiba, porque ele deixava 2 litros de O2 em bebês com campânula, em insuficiência respiratória evidente, pois no berçário não tinha ar. E ele me disse que fazia assim porque dali nunca tinha saído nenhum cego por retinopatia. Perguntei como ele sabia, se não examinavam os olhos dos recém-natos. Fui procurar essas crianças. Me apresentei a escolas de deficientes visuais, fiz uma lista dos que tiveram retinopatia da prematuridade e, das que tinham nascido naquele hospital, encontrei muitas. Deixei a lista para ele, com as normas da época sobre ventilação de recém-natos.

Claro, não pude entrar mais naquele berçário; não falaram mais comigo, que tinha acabado de sair da residência. Mas, algum tempo depois, soube que algumas rotinas foram mudadas.

Com o que encontrei, pensei que outras existiriam em outras escolas. Fui até às de crianças surdas, com deficiência mental, física e múltiplas, apenas como interessada em como poder ajudar. Na maior parte delas,  as causas das deficiências eram totalmente evitáveis, como as consequentes à hipóxia perinatal e falta de assistência pós-natal. Paralisia cerebral era a mais frequente. Comecei a fazer pesquisas independentes nos anos 1980.

Fui convidada a escrever a Lei do Teste do Pezinho para o Estado e coloquei ali alguns critérios de assistência perinatal, com a necessidade de equipamentos e equipe mínima em todos os hospitais que atendiam nascimentos, e de UTI nas maternidades de maior porte.

Da cegueira, nas escolas de deficientes visuais, a retinopatia da prematuridade e a toxoplasmose eram as maiores causas. Os berçários importantes de Curitiba não tinham sequer ar para misturar ao oxigênio. Daí fui até a Secretaria de Saúde com estes dados. Não tinha nenhum emprego público, mas me ouviram um pouco. Levei os números, deficiências e suas causas.

Não faziam pesquisa de toxoplasmose na gravidez, nem tratamento. O assunto começou a ser discutido e, depois de um tempo, procurei a Sociedade Paranaense de Pediatria e o Dr. Luiz Fernando Braga (obstetra), também estava fazendo pesquisa sobre causa de mortalidade neonatal e, com o Dr. Diether Garbers (à época presidente da Sociedade de Pediatria) acompanhamos por seis meses o óbitos de RN. A partir dai o também o Dr. Braga levou os dados à SESA.

Comecei campanhas de prevenção pela APAE... Folders, aulas e capacitações por vários locais do Paraná, sempre de forma voluntária.

Recordo que a maior causa de surdez decorria da rubéola congênita, depois meningite e sofrimento fetal. Então, através da APAE, tentei conseguir empresas que pagassem a vacina a seus funcionários. À época, com os dados exibidos em documento enviado à Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, os responsáveis responderam preferir a imunidade natural.  nosso secretário de saúde municipal à época respondeu ao documento que enviei a ele com estes dados que, em Curitiba se preferia a imunidade natural. Então, aliei-me a esses centros para promover campanhas de prevenção de deficiências; e foram muitas.

Conseguimos, através da APAE, a adesão de organizações como Telepar e o Bamerindus, onde foram vacinadas muitas mulheres em idade fértil. Porém, o governo parou de importar vacinas. Daí, em 1992, fiz o esboço de uma lei que passaria a viger em 1995, fazendo com que fôssemos o primeiro estado a vacinar mulheres em idade fértil contra rubéola. Foi muito legal! Mais de um milhão... Depois, entrou no calendário normal das crianças e adolescentes. São Paulo seguiu nosso caminho.

Nessa época, anos 1990, eu fui escolhida e assumi a presidência do Conselho Estadual da Pessoa Portadora de Deficiências. Era muito trabalho. Os portadores de deficiência lutavam por seus direitos sem nenhum ou com pouquíssimo suporte científico, mesmo da medicina, pelo que acreditavam que lhes fazia bem, ou aos seus filhos. As escolas de crianças com deficiências faziam o melhor que podiam, mas não tinham acesso a exames mínimos, como de visão e audição. Mais uma luta.

clique para ampliarclique para ampliarPeças de campanha deflagrada pelo Dedica e de grande impacto na sociedade. (Foto: Arquivo)

Depois, fui convidada e indicada a ser diretora do CRAID, na Rua do Rosário, centro regional para atendimento a crianças com deficiência da SESA. Emprego público por cargo comissionado. Assumi com salário ínfimo, mas, então comecei a conseguir os exames e atendimentos médicos, odontológicos, de fisio, fono e TO, expandindo o número de assistidos por aquele centro. Fiquei lá até 1999. Nesse período, participei de um programa da SESA, muito especial, o Protegendo a Vida. Viajei com um grupo de médicos da SESA para as macrorregiões para falar da criança, seu desenvolvimento e a prevenção das deficiências. Acho que foi bom trabalho.

Pela Sociedade de Pediatria, anos 1990, comecei a fazer parte do Departamento Científico de Segurança e, com seu presidente na época, Dr. José Américo Campos, fundamos o primeiro DC de Segurança da Sociedade Paranaense de Pediatria (em 1998), do qual tenho sido presidente há muito tempo, com poucas variações e componentes. Por falta de interessados, infelizmente.

Mas, nas crianças e adolescentes com deficiência abandonados num centro que se chamava CRAVE, comecei a ver os horrores da violência de pais e o que chamavam família. Tinham marcas no corpo que eu não sabia identificar, deformidades ósseas de fraturas consolidadas sem tratamento, deformidade corporal por terem crescido dentro de gaiolas... Era insuportável pensar o quanto tinham sofrido, sem terem capacidade mental para entender e se defender.

Então, em 1998, comecei um movimento para encontrar as outras crianças vítimas de violências, mas, não havia diagnóstico, nem denúncias; elas eram invisíveis, inalcançáveis.

Coordenando o Departamento de Segurança da SPP, iniciei um grupo de trabalho interdisciplinar, envolvendo pessoas muito especiais, do Ippuc e das secretarias de saúde, educação e ação social de Curitiba.

Para este grupo levei a ideia de uma ficha de notificação (nome que escolhemos para que não assustássemos os denunciantes), única para todos que trabalhavam na infância e adolescência. Levei uma de sarampo para começarmos a trabalhar e era um grupo fantástico. Levamos seis meses para definir notificação. Eu, voluntária, duas reuniões por semana e por mais de 2 anos para estruturar o primeiro projeto piloto de implantação da Notificação Obrigatória (N.O.).

Não tivemos nenhuma notificação por meses, nem da saúde, nem da educação, nem da ação social. Os profissionais, inclusive médicos pediatras, tinham dificuldades em reconhecer um caso de violência ou de como lidar com ele.

Partimos para um processo de capacitação dos profissionais da rede. De 2000 a 2004 foram mais de dez mil. As crianças vítimas de violências começaram a ser identificadas. Nossa ficha de N.O. passou a identificar essas crianças e adolescentes e a possibilitar seus tratamentos e proteção. Foi modelo nacional.

Mas, como impedir a repetição da violência se, em mais de 90 % dos casos, os agressores eram os pais, avós ou responsáveis. Como protegê-las se a lei que rege a definição de maus-tratos e os laudos do IML até os dias de hoje foi escrita em 1940?

Daí, nos encontramos para trabalhar no grupo que chamei DEDICA (Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), para tentar propor alterações da legislação e ir mais longe com o processo de capacitação dos profissionais para diagnóstico, tratamento e proteção das crianças vítimas de violência.

Aqui é importante nomear alguns dos grandes incentivadores, como o Dr. Pujol, da SPP, o Dr. Carlos Ehlke Braga Filho, do CRM-PR); o Dr. Alberto Machado, do MP; a Dra. Marcia Machado, da OAB); a Dra. Cristina Maria Suter Correia da Silva, da PGJ; e ainda os Drs. Leo Cardon, da Psiquiatria, Edilson Furlin, da Orto-Pediatra. Nos reunimos semanalmente por quatro anos e, tenho certeza, fizemos um trabalho lindo, tanto do documento para reformular o Código Penal Brasileiro, como de capacitação de profissionais de todas as macrorregiões de nosso estado. Tudo voluntariamente em favor das crianças e adolescentes vítimas dos mais variados tipos de violência.

Foi muito especial. Falamos com ao menos dois profissionais de cada município do Estado e semeamos muitas redes de proteção. E esse sempre foi meu maior privilégio, o de encontrar pessoas muito especiais em meu caminho, que também estavam dispostas a dar parte de seu tempo para defender o direito das crianças de terem uma vida digna. Trabalhamos muito, mas dos casos graves, não existiam critérios, normas e estudos científicos suficientes para dizer como interromper o ciclo da violência intergeracional e tratar seus efeitos em seres ‑ em especial fase de desenvolvimento ‑ de todas as classes socioculturais, etnias e credos.

Ainda no início dos anos 2000, o Dr. Lincoln Freire, presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, aceitou criar um grupo de trabalho) para crianças com deficiências e, ao mesmo tempo que ia nos congressos para falar de acidentes e violência, criei um grupo com um pediatra de cada região brasileira. Assim, fazíamos cursos de atualização sobre prevenção e assistência a crianças com deficiências. O grupo de trabalho depois foi transformado no Departamento Científico de Desenvolvimento da SBP.

Assim também nasceu o HC DEDICA, porque os casos graves de violência não tinham para onde ser encaminhados. Propus uma tese de mestrado para criar dentro da UFPR um centro de atendimento a vítimas de violências, como assistência e também um centro de ensino. Esperávamos que a UFPR assumisse esse programa. No entanto, iniciei os atendimentos em 2004 e, em 2006, conseguimos o ambulatório e, já nos primeiros dias de atendimento, já estavam lá voluntários como o Dr. Pujol.

A atividade continuou como um programa de voluntários e, em uma vez por semana, os atendimentos envolviam pediatras, psicólogos, psicanalistas, psiquiatra, advogado e promotor de justiça. Atendíamos de 40 a 80 pessoas por dia, entre vítimas, responsáveis e agressores, estes quando tinham laços de parentesco e convivência com a criança e eram passíveis de tratamento. Criamos uma nova forma de escutar as crianças e famílias, buscando sinais e sintomas das desvinculações e das violências.

E as histórias se multiplicavam, porque nos agressores tínhamos os adultos sequelados pelas violências das suas infâncias não diagnosticadas e não interrompidas. Alguns já com estrutura de personalidade deformada e não mais tratáveis. Nas crianças e adolescentes, as histórias e marcas das crueldades que sofriam se superam a cada caso, eles que encaminhados ao DEDICA por sintomas que incomodavam o mundo adulto, como fracasso escolar, agressividade, enurese, encoprese, déficit de atenção, hiperatividade, supostos transtornos de humor e de comportamento. Sintomas que desapareciam com a interrupção da violência e o tratamento psicoterapêutico da vítima e responsáveis.

Após 12 anos de voluntariado, conseguimos a filiação a uma instituição não governamental, a Associação Amigos do HC e, há quase cinco anos, novamente com um grupo de profissionais muito especiais, recebemos casos graves e gravíssimos de violência, com histórias inimagináveis de crueldade, hoje também pelas mentes criminosas e perversas dos meios virtuais.

Hoje faço parte de alguns outros grupos de atenção à criança e ao adolescente, como Proteca, ligado a professores da UFPR; e o GT Saúde na era digital, da SBP. Tenho um projeto em desenvolvimento com Family Talks e passei a fazer parte de um grupo focal ligado à ONU, o IFFD – Families and New Technologies.

Com o tratamento físico e psíquico das vítimas, tem-se a fantástica capacidade de evolução das crianças e de boa parte dos adolescentes, onde seus sintomas de sofrimento desaparecem, e, se acompanhados também pela educação e ação social, passam a compensar seus atrasos de desenvolvimento, a bem crescer e escolher bons caminhos para suas vidas.

A escuta dessas histórias me ensinou muito mais sobre o psiquismo humano que qualquer livro. E o poder de recuperação das pequenas vítimas me ensinou que precisamos encontrá-las e tratá-las o quanto mais cedo para que não sejam marcadas para sempre pela violência, a maioria delas reféns de seus agressores.”

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