Desafio aos médicos

Josemar Dantas

A admissão da saúde como direito de todos e dever do Estado, garantia alçada à Constituição de 1988 (art.196), constituiu avanço social de maior impacto para socorrer milhões de brasileiros atirados à marginalidade assistencial. Para a efetivação do notável mandamento, o próprio Texto Magnol criou o Sistema Único de Saúde (SUS), mais visível no § 1º do mencionado artigo 196. O dispositivo viria a ser regulamentado pelas leis nº 8.080/1990 e 8.142/90.

É evidente que a legislação regulamentadora não poderia cumprir o imperativo constitucional caso não ordenasse a eliminação de fatores ambientais que propiciam graves danos à saúde. Eis a razão pela qual a Lei 8.080/90 determinou à direção nacional do SUS "participar da formulação e implementação das políticas (...) de saneamento básico (artigo 16, II, letra b).

O mesmo artigo 16, XIX, fundou "o Sistema Nacional de Auditoria para coordenar a avaliação técnica e financeira dos SUS em todo o território nacional, em cooperação com os estados, os municípios e o Distrito Federal". Quando se sabe que, este ano, apenas os gastos reservados à União para o programa chegarão, no mínimo, a R$ 177 bilhões, não resta dúvida sobre a pertinência da auditagem.

Todavia, passados 25 anos da Constituição e 23 dos preceitos regulatórios, as duas obrigações fundamentais cometidas ao SUS permanecem ignoradas em parte superlativa. Os últimos dados colhidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE (2011) mostram que, dos 5.564 municípios brasileiros, 3.995 não possuem políticas de saneamento básico. Reside aí a causa da morte por diarréia de 30% das crianças como menos de um ano de idade e de 60% das internações nos leitos de pediatria. Também surgem do cenário lastimável cerca de 5,5 milhões de casos de esquistosomose.

Quanto ao controle técnico e financeiro da instituição, entre 2008 e 2012, fraudes praticadas por governos estaduais, prefeituras, instituições públicas e particulares alcançaram a respeitável soma de R$ 502 milhões. Houve de tudo: desvios dos recursos para outros setores da administração, roubo de equipamentos doados, cobranças indevidas, licitações viciadas, favorecimentos. Um episódio é o bastante para dimensionar a pilhagem dos dinheiros públicos: em um só dia, clínica de Água Branca, no Piauí, atendeu um paciente 201 vezes e recebeu do SUS o pagamento do serviço.

A autenticidade dos assaltos tem selo oficial. Aflorou de investigação realizada pelo Departamento Nacional de Auditorias do Sus (Denasus), que, agora, busca reaver os recursos roubados. Não deixa, contudo, de merecer censura severa do contribuinte, eis que a fiscalização deve prevenir o uso criminoso das dotações públicas, não apenas revelá-lo depois do fato consumado

Acresce anotar que o Ministério da Saúde recorreu a conveniências "técnicas", sujeitas, pelo menos, a reações de perplexidade, para justificar a desativação de 13 mil leitos da rede pública, entre 2010 e 2013. Coube ao Conselho Federal de Medicina (CFM) dar publicidade à insólita decisão.

Será que os médicos cubanos, aqui trazidos como peças de publicidade eleitoreira, vão conseguir que o SUS cumpra a Constituição e as leis? Compensar a perda de leitos com a criação de novos? Livrar o contribuinte de pagar a conta da rapinagem sistemática?

Artigo escrito por Josemar Dantas, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Publicado no jornal Correio Braziliense.

* As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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