Desafios de formar um médico no mundo atual

Ursula Bueno do Prado Guirro

Com a quantidade de informações disponíveis e as muitas exigências pessoais, às vezes é difícil observar as pequenas coisas cotidianas. Some isso aos fatos corriqueiros que colocam em dúvida a moralidade e a ética na sociedade. Agora, multiplique no cenário de formar futuros médicos no Brasil.

Dia desses, um aluno do curso de medicina disse para mim: “Professora, você está sendo intransigente”. E, eu, confesso que fiquei pensativa; fui ler e gostei da definição de intransigente. Adorei ser uma professora intransigente!

De acordo com o dicionário, intransigente é um adjetivo e tem as seguintes definições: (1) que ou aquele que não transige, que não faz concessão, inflexível, intolerante; (2) que ou aquele que se caracteriza pela austeridade, pela rigidez na observância de seus princípios.

Se intransigente caracteriza uma professora do curso de medicina que tem rigidez na observância dos seus princípios, sim, eu sou intransigente com orgulho. Se ser intransigente é ensinar além do conteúdo técnico e exigir cumprimento das regras, sim eu sou intransigente.

Antes que pensem que eu sou rabugenta, vou contar o fato poupando o milagre, sem contar os santos. Passei uma lista chamada em sala de aula e dos vinte e poucos presentes, a lista voltou com 42 assinaturas. Sim, ocorreu o milagre da multiplicação de assinaturas na minha sala de aula. Suspeito... Refiz a chamada e cancelei as assinaturas dos ausentes. Além dos faltosos que se beneficiariam da assinatura fraudulenta dos seus amigos, tiveram alguns alunos que entraram em sala, assinaram a lista e saíram. Voltaram apenas no final da aula para buscar as bolsas.

Todos ganharam faltas. A situação do ponto de vista prático estava resolvida. O que ficou retornando aos pensamentos desta professora, agora uma intransigente, era de como podemos resolver a crise ética em que vivemos?

No cenário brasileiro são inúmeras notícias diárias de corrupção, excesso de poder, desvios financeiros, salários milionários e abusos sexuais e, infelizmente, raramente se vê a punição por atitudes éticas e morais inadequadas. Por outro lado, as boas atitudes também não são valorizadas. Como podemos clamar por ética se o brasileiro raramente mostra esses valores? E também não se vê notícias na primeira página, como fulano cumpre com suas obrigações e foi recompensado ou não avança no sinal vermelho. As boas atitudes são apontadas como meras obrigações. Ou seja, fazer o bem não é exaltado e fazer o mal raramente é punido.

No meu caso, como professora no curso de medicina, precisei rever o meu papel. Será que a aula estava chata ou inadequada? Acredito que não; eram casos práticos de violência infantil e como os estudantes poderiam reconhecê-la e poupar outras vítimas. Faz parte da formação médica lidar com violência. É triste, é feio, mas é realidade. Não dá para querer fazer faculdade de medicina e só ter aulas divertidas. Medicina tem dor, doença, violência e morte e, às vezes, bem difícil. Diria que a minha aula estava mais para emocionalmente pesada, mas confesso que reformularei a metodologia para tentar atrair a atenção dos alunos.

Pensei muito e me questionei se precisamos ensinar para jovens adultos que é necessário cumprir a responsabilidade? Conclusão: sim! Precisamos ensinar para os estudantes de medicina, aqueles que passaram em provas concorridíssimas, que é preciso vir às aulas, estar presente fisicamente e cumprir todos os pré-requisitos de um currículo de oito mil horas em seis anos e que estas são as necessidades para se tornarem médicos no Brasil. E que o futuro exigirá bem mais deles na prática profissional.

Não me isento de responsabilidade como médica e professora em me atualizar cientificamente e também atualizar as metodologias de ensino para as necessidades do mundo atual, visto que as competências necessárias do médico são muitas.

Dá para deixar o ensino divertido? Às vezes sim. É possível introduzir metodologias ativas, produção de portfólios, gamificação de tarefas, entre outros. Mas tem que fazer, tem que estudar e estar presente. E observamos que temos uma geração diferente da nossa no banco das universidades. Uma geração conectada, com valores sociais, mais ligada no que lhes dá prazer, mas frágeis quando são muito exigidos.

O curso de medicina é exigente? Sim, muito. Tem a exigência de muito estudo, tem a concorrência interna dos próprios estudantes, tem a pressão social do que é ser médico, tem o aprender a lidar com dor, vulnerabilidade e morte, e tem muita coisa exigente... Não tem muito espaço para equívoco. Estamos falando de vidas que merecem nossa dedicação.

O aluno tem que estar presente. O professor também.Cada um cumpre o seu papel. Todos se dedicam.

E eu seguirei sendo uma professora intransigente e, talvez, exigente de uma medicina que precisa melhorar.

 

* Ursula Bueno do Prado Guirro é médica anestesiologista, mestre e doutora em Medicina, professora de Bioética e Cuidados Paliativos do curso de Medicina da UFPR e conselheira do CRM-PR. Atua com humanização e cuidados na terminalidade da vida.

**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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