14/05/2008

Desceu quadrado - lobby da cerveja

Nos vídeos brasileiros a cerveja continuará jorrando, generosa e farta, em mensagens que identificam seu consumo à alegria, à jovialidade, ao sucesso, à beleza e às mulheres de biquíni



No projeto do governo que pretende restringir a publicidade de cerveja
na televisão embutia-se um confronto entre o progresso e o atraso, a
civilização e a barbárie, o interesse público e os interesses privados.
Encaminhado ao Congresso em regime de urgência, estava na semana passada
na iminência de ser posto em votação quando um acordo entre as
lideranças partidárias, ao retirar-lhe a urgência, remeteu-o para as
calendas gregas. Venceram o atraso, a barbárie e os interesses privados. O projeto visava a corrigir uma anomalia criada pela lei de 1996 que proibiu o anúncio de bebidas alcoólicas antes das 21 horas.


A cerveja ficara de fora sob a justificativa de ter teor alcoólico
menor. Não é preciso ser um profissional da saúde para concluir que o
que importa não é o teor alcoólico, mas a quantidade de bebida ingerida.
Falou mais forte, no entanto, o lobby da cerveja, representado pela
coligação que reúne fabricantes, agências de publicidade e emissoras de
televisão. Essa mesma coligação venceu outra vez na semana passada. Num
Congresso coalhado de proprietários de emissoras de TV (eta, Brasil!),
encontrou amparo amigo em deputados como o líder do PMDB, Henrique Alves
(de uma família dona de concessões no Rio Grande do Norte), e Antonio
Carlos Magalhães Neto (idem na Bahia).


O combate ao abuso do álcool é uma das principais bandeiras do ministro
da Saúde, José Gomes Temporão. Uma de suas iniciativas foi a tentativa
de proibir a venda de bebidas nos bares e restaurantes à beira das
estradas. Venceu apenas pela metade, pois no Congresso abriu-se uma
exceção para bares e restaurantes situados em áreas urbanas. A tentativa
de fazer com que a publicidade de cerveja não se espraiasse tão à
vontade, lotando os intervalos do futebol, nos fins de semana, ou se
imiscuindo nos noticiários e nas novelas, nos horários de maior
audiência, era outra de suas prioridades. O argumento do ministro é a
saúde pública. Este é o país dos 35 000 mortos por ano em acidentes de
automóvel, em grande parte causados por embriaguez do motorista. É
também o país dos assassinatos fúteis no bar e da violência doméstica,
para os quais o álcool dá contribuição decisiva.


Nas últimas semanas o lobby da cerveja se fez presente em anúncios nos
jornais e na TV. O anúncio da TV começava com uma falsidade ("Querem
proibir a publicidade de cerveja", dizia, quando na verdade se tratava
de restringir sua veiculação) e avançava pela argumentação de que a
publicidade nada tem a ver com a embriaguez dos motoristas ou a
violência dos bêbados. No mundo angélico assim descrito, ninguém bebe
porque viu anúncio da bebida. Ou seja: a publicidade não provoca
efeitos. É um mero exercício platônico, inócuo como comprimido de
farinha. O golpe de graça estava guardado para o grand finale, quando,
em defesa da publicidade da cerveja, invocava-se a liberdade de
expressão. Nada menos do que o nobre conceito, flor do Iluminismo, da
liberdade de expressão - como se pairasse a ameaça de censura a algum
evento ou se tramasse a repressão a alguma corrente de opinião.


Num anúncio nos jornais, em que também se insistia na tônica da
inocuidade da publicidade - pintada como tão responsável pelos bêbados
quanto os abridores de garrafa (!) -, o que estaria em jogo seria "o
direito sagrado" de "se informar e formar a sua opinião". Como se os
anúncios de cerveja tivessem algo a informar além da preferência do Zeca
Pagodinho, e como se à vista deles se pudesse formar opinião mais
complexa do que escolher o mais revelador entre os biquínis das moças.


Os anúncios foram elaborados pela Associação Brasileira de Agências de
Publicidade (Abap). Entidades da classe ou lideranças publicitárias
também se opuseram, um ano e meio atrás (e também invocando o santo nome
da liberdade de expressão em vão), à lei que proibiu os outdoors em São
Paulo. Foi a melhor coisa que aconteceu na paisagem da cidade em muitos
anos e conta com amplo apoio da população. Com a manobra da semana
passada os anúncios de cerveja sem restrição de horário ganharam uma
sobrevida talvez de anos. Mas é inevitável que um dia não mais se
apresentarão sem freios. Fazem parte da consciência do nosso tempo as
idéias de que não se deve estimular o consumo de produtos como cigarros
e bebidas alcoólicas, especialmente junto às crianças e aos jovens, e de
que a publicidade na TV é um dos mais poderosos estímulos, especialmente
junto às crianças e aos jovens.


Há alguns anos também os anúncios de cigarro campeavam soltos. Fumava-se
nos programas e os estúdios ficavam cheios de fumaça. Anúncios de
cigarro, que costumavam ser tão glamourosos como são hoje os de cerveja,
ou apresentadores puxando suas tragadas no ar hoje soariam chocantes.
Não está longe o dia em que também os anúncios de cerveja soarão
chocantes.


Fonte: Revista Veja

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