Empatia no lugar certo

Daniel Martins de Barros

Essa anestesia psíquica reduz a percepção do valor de salvar vidas.

A imaginação humana é uma poderosa arma não domesticada. Sua força está em seu enorme potencial, capaz de criar a manipular cenários em combinações praticamente infinitas. Tal poder é, ao mesmo tempo, a raiz de seu descontrole, pois quanto mais possibilidades nossa mente nos apresenta, menor a probabilidade de acertar na previsão do que realmente acontecerá. Expectativa e realidade raramente coincidem, como mostram os memes na internet.

Há um ano, como você imaginava que seria o desenrolar da pandemia? Meus devaneios antecipavam o apocalipse zumbi, por um lado, ou um mero susto, por outro. Temia o pior, esperava o melhor. (Ou seria o contrário?) Mas veio a realidade, que paradoxalmente tem um pouco de cada cenário. No lado catastrófico, quase 250 mil mortos, mais de dez milhões infectados, a maioria carregando alguma sequela maior ou menor. Centenas de milhares de famílias em luto. Tal realidade convive com a da vida normal para outros milhões de cidadãos.

Não só para aquela minoria – barulhenta e incômoda – que ignora a pandemia, mas também para o grande contingente que, com as adaptações necessárias, acorda cedo, coloca os filhos na es‐ cola e trabalha – online ou não –, passeia onde dá, lamenta as perdas quando elas chegam, e segue em frente.

Se isso é verdade, precisamos de estratégias diferentes para lidar com dois problemas diferentes: a atitude de quem não foi diretamente afetado pela pandemia e o sofrimento dos que foram. Uma visa a mobilizar indivíduos em prol da coletividade. Outra, mobilizar a coletividade em prol dos indivíduos. A primeira se alcança só com coerção, não tem jeito. Não adianta apelar para a compaixão, brandir números de mortes. Não é maldade. Não é falta de empatia. É do ser humano.

A morte nessa escala industrial pode ser compreendida como tragédia nacional, mas não será sentida como pessoal – ninguém perdeu 250 mil amigos próximos. Tanto é assim que quanto mais mortes, menos parecemos ser afetados. A frase famosa de que a morte de alguém é tragédia, mas a de milhões é estatística tem sido confirmada por pesquisas científicas. Quanto mais afetados por um evento, menos impacto sobre as pessoas. A anestesia psíquica reduz a percepção do valor de salvar vidas e embaça a capacidade de avaliar perdas. A gente passa a se importar mais com a pro‐ porção de salvos do que com o número absoluto de mortes.

Não é coincidência que diuturnamente testemunhemos uma guerra de narrativas sobre a pandemia. Um lado mostrando o número de mortos no País, outro insistindo em apresentar as mortes por milhão. Para mudar o comportamento individual de quem não foi pessoalmente afetado, a estratégia tem de ser obrigatoriedade de máscaras, proibição de aglomerações, fiscalização rigorosa, multa, sanções.

Para os milhares pessoalmente afetados, a história é outra. Embora a maioria das pessoas atravessando essas situações esteja em luto e não doentes, isso não significa que elas não se beneficiem de algum tipo de ajuda.

Não é o caso de mandar todos para um psiquiatra ou fazerem terapia. Mas podemos trabalhar coletivamente para aliviar o sofrimento generalizado, que não poupou nenhuma cidade. Aí o impacto emocional tem sentido. Quando individualizamos o sofrimento e contamos a história da pessoa enlutada pela morte da esposa, aflita pela perda do emprego, ansiosa pela doença do pai, temos mais facilidade de sentir empatia.

Pode ser a ferramenta mais importante a nos levar a cuidar uns dos outros. Ela que nos fará oferecer um pouco de nosso tempo a um amigo, escutar sem julgar, perguntar “como posso aju‐ dar?”, antes de dar opinião ou sugestão, e auxiliar na busca por ajuda profissional quando nada disso der resultado. Cansamos de falar da importância de cuidar da coletividade e inutilmente cobramos empatia num contexto em que ela não ajudaria. É hora de ressaltar a importância de cuidar dos indivíduos. Não falta empatia ao brasileiro. Falta invocá-la no contexto correto.

*Dr. Daniel Martins de Barros é médico (CRM-PR 100.674) e professor colaborador do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

**Artigo publicado em sua coluna em O Estado de S. Paulo de 22 de fevereiro de 2021.

***As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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