Especulação com células

Editorial do jornal Folha de S. Paulo

É auspiciosa a iniciativa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de editar cartilha para alertar pais quanto à virtual inutilidade de manter congelado num banco privado o sangue do cordão umbilical dos filhos, em vez de simplesmente proibir o procedimento --tentação autoritária em que já caiu noutras situações.

Cordões umbilicais são ricos em células-tronco, que conservam a capacidade de se converter em vários tipos de tecido, de ossos a neurônios. Acredita-se que esse tipo de célula contenha a chave para curar moléstias tão variadas como diabetes e mal de Alzheimer, mas essas são perspectivas para o futuro.

Atualmente, a lista de tratamentos comprovados que podem ser feitos com células de cordões umbilicais está restrita a cerca de 80 doenças hematológicas, notadamente leucemias e anemias.

Como as promessas são grandes e o risco sanitário é zero --o cordão normalmente vai para o lixo após o parto--, certos bancos de sangue aproveitam o momento do nascimento para extrair lucros de pais zelosos.

A um custo de cerca de R$ 5.000, mais R$ 1.000 de anuidade, oferecem-se para coletar as células-tronco do cordão e mantê-las num banco privado, de onde poderão ser sacadas caso surja a necessidade.

Em termos de vendas, é eficaz. Mas nem sempre fica claro que a probabilidade de um indivíduo vir a necessitar de um transplante de suas próprias células é extremamente baixa, estimada em algo entre 0,0005% e 0,04% para os primeiros 20 anos de vida. Vendedores tampouco se esforçam para esclarecer que, por terem os cânceres sanguíneos um componente genético, convém não usar células do próprio paciente para tratá-los.

Aí é que entram os bancos públicos de cordão umbilical. Nunca foi absolutamente necessário, nem mesmo recomendável, que cada indivíduo tivesse seu próprio estoque. Ninguém guarda bolsas pessoais de sangue para a eventualidade de uma transfusão.

Organizar uma massa crítica de doadores anônimos é estratégia com muito mais racionalidade, que cabe ao setor público executar. Basta garantir que as amostras armazenadas deem conta da variabilidade genética da população para que os cordões congelados possam ser utilizados, em regime de partilha, por qualquer pessoa que tenha necessidade.

Quem quiser aplicar alguns milhares de reais numa especulação deve ser livre para fazê-lo. Hoje, contudo, faz mais sentido investir em bancos públicos, como bem mostra a cartilha da Anvisa.

Leia no site do jornal.

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