03/01/2007

França vai estimular medicação sem receita

País deve economizar 2,5 bi com a medida, indicada em casos simples

Depois de alcançar o mais baixo índice de automedicação da Europa, o governo francês deve passar a estimular pacientes de doenças leves, como febre, dores de garganta, de cabeça e de estômago, a buscar nas farmácias - e não nos consultórios médicos - a cura de seus problemas. A medida controversa foi elaborada pelo Ministério da Saúde e visa à redução dos gastos com o reembolso dos medicamentos, cujo custo é coberto em 75%, no mínimo, pelo Estado.

A proposta, baseada em um relatório elaborado pelos médicos e pesquisadores Alain Coulomb e Alain Baumelou, deve ser sancionada em fevereiro pelo governo, a pedido do ministro da Saúde, Xavier Bertrand. Seu intuito oficial é reduzir a procura pelos médicos do sistema público, uma vez que o paciente já tenha sido orientado por um especialista quando da primeira vez em que sofreu do problema. Além do alívio da demanda em hospitais, existe a intenção do governo de Jacques Chirac de reduzir o investimento público na compra de remédios. Na França, a maioria das drogas de Prescrição Médica Facultativa (PMFs) é paga pelo paciente na hora da compra - na farmácia - e, depois, reembolsada.

O reembolso vem representando uma armadilha orçamentária crescente para o governo francês ao longo das últimas décadas. O Ministério da Saúde limita em 6% o número de drogas de venda livre de receita, uma orientação seguida à risca pelas farmácias do país. Na Grã-Bretanha, a mesma lista é composta por 12% dos remédios, enquanto na Alemanha o porcentual chega a 14% e na Espanha, a 15%.

A restrição ao comércio livre faz com que os franceses gastem, em média, 28 na compra de remédios ao longo de um ano, um investimento que chega a 60 entre os alemães. Paradoxalmente, franceses estão entre os maiores consumidores de remédios do mundo. A relação se explica por um hábito cultural: na França, é preciso ir ao médico para obter a receita, que autoriza a compra e o reembolso do dinheiro.


ECONOMIA DE 2,5 BILHÕES

De acordo com a indústria farmacêutica local, o mercado de PMFs comprados pelo público, que poderia chegar a 6 bilhões, limita-se a 1,6 bilhão. A Associação Francesa da Indústria Farmacêutica estima que, se o porcentual de drogas livres de prescrição subisse 5%, o governo economizaria 2,5 bilhões. A indústria, por outro lado, passaria a lucrar mais, depois de autorizada a fazer publicidade nos meios de comunicação, outra medida prevista no relatório.

"A automedicação não é mais importante para o paciente do que é para o Estado. É uma questão de economia", disse ao Estado Stéphane Fleurot, porta-voz das companhias de fármacos. "A automedicação já existe, mas está livre, sem regulamentação. Nós queremos dirigir a compra, autorizar a aquisição de determinados medicamentos, e não de outros."
Embora polêmica, a "automedicação responsável" é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma forma de desonerar os sistemas de saúde. Mas a alternativa inclui riscos, como o diagnóstico incorreto, o atraso no tratamento, a administração de remédios em doses incorretas e a possibilidade de dependência, além dos efeitos colaterais. Segundo a organização, 10% das internações médicas são causadas pelo mau uso de remédios.

Na França, livros debatem o tema e mesmo o Conselho da Ordem dos Médicos se mostra tolerante à automedicação controlada para casos de dores, fadiga, insônia, tosse, constipação e alergias leves. Jean Pouillard, autor de A Automedicação e membro do Comitê Permanente dos Médicos Europeus, disse ao Estado apoiar a medida do Ministério da Saúde, desde que sejam tomadas ações de vigilância sanitária adequadas: "Há medicamentos que justificam a liberação da receita. Mas é preciso investir na educação do paciente pelo médico. O doente, em geral, não sabe fazer o diagnóstico do que sente, nem a hora de parar e procurar um especialista."

O estímulo oficial ao consumo vem a público ao mesmo tempo em que a França começa a enfrentar problemas com o comércio eletrônico de remédios - comum nos Estados Unidos e no Canadá. Pela internet já é possível adquirir produtos de venda controlada e mesmo remédios não homologados pela Alta Autoridade em Saúde e cuja venda ao público ainda depende de testes clínicos.


PROBLEMA NO BRASIL

Se na França a automedicação pode ser encarada como solução, para as autoridades em saúde pública brasileiras ainda é um problema. A prática é desestimulada pelo Ministério da Saúde e pela Associação Médica Brasileira. No País, o consumo indiscriminado de remédios está associado às instruções de farmacêuticos, amigos e parentes, e não à educação prévia do paciente por um especialista.

O problema se agrava por dois fatores: falta de fiscalização, nas farmácias, sobre a venda de medicamentos de uso controlado, e a publicidade da indústria farmacêutica, que induz ao consumo sem intermediação médica.

A soma de fatores pode levar ao agravamento de doenças como apendicites agudas e neoplasias gástricas e intestinais, nas quais os sintomas iniciais são similares a enfermidades simples. Além disso, há risco de envenenamento. Dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), indicam que remédios provocam 26,9% das intoxicações no Brasil.

A informação confirma um estudo realizado no fim dos anos 90 pelo Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) da Universidade de São Paulo (USP), que associou 40% dos 3,2 mil casos de intoxicação investigados à ingestão de medicamentos sem orientação médica.

A despeito do problema, o lobby pela automedicação existe também no Brasil. Fundada em 1994, a Associação Brasileira da Indústria da Automedicação Responsável "denuncia" o uso indiscriminado dos remédios, mas ressalta a utilidade da venda direta ao público dos chamados medicamentos anódinos. A entidade reúne 27 sócios nacionais e multinacionais responsáveis por 80% do faturamento dos isentos de prescrição. O mercado, correspondente a 25% a 30% do comércio de remédios, movimenta R$ 4 bilhões por ano no Brasil.


Fonte: O Estado de São Paulo - 02/01/2007

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