Humanização e os desafios atuais

Ursula Bueno do Prado Guirro

O termo humanização pode parecer estranho quando nos referimos a seres humanos. Como que os humanos não poderiam ser humanizados?

Certa vez ouvi que deveríamos nos preocupar em humanizar serviços e processos, aquilo que não é humano, pois humanos já são humanizados. Será?

Questiono-me se a humanização é intrínseca da natureza humana, um item nativo ou que já vem “de fábrica”, ou se precisamos aprendê-la no decorrer da vida.

Pois é... A vidame fez refletir sobre este assunto recentemente.

Antes que o leitor se preocupe com o tom deste texto, não pretendo fazer um relato autobiográfico do sofrimento ou das mazelas. Pretendo fazer uma reflexão sobre as atitudes daqueles que se propõem a cuidar de outro ser humano, profissionalmente, como médicos.

Os médicos também se tornam pacientes e, por vezes, adoecem e morrem. Creio que todos que buscam serviços de saúde deveriam ser bem tratados, tanto técnica como humanamente.

Eu, apesar de não ser afeta das longas falas vaziascomo o clima ou dos humores políticos e econômicos, sinto-me acolhida quando um ser humano me fala bom dia, emite um sorriso e faz seu trabalho com qualidade técnica e é gentil. Adoro quando alguém se preocupa se estou confortável e segura em situações de vulnerabilidade.

Não leva tempo exaustivo cobrir um paciente, explicar como será feito um exame, explicar um resultado ou justificar que chegará atrasado no consultório. Na verdade, isso é a mais pura definição da prática médica humanizada.

Antes que o leitor comece a pensar que meu dia tem 40 horas, adianto que o meu tempo é escasso e acredito que o do leitor também é. Após o bom dia, todos nós temos que ir ao trabalho ou executar uma tarefa. Mas manter o sorriso no coração e seguir fazendo o que tem quer feito, da melhor forma, é digno e ético com o mundo dos outros seres humanos.

Acredito que só assim a gente chegará à noite no travesseiro com a sensação de missão cumprida e de que o trabalho fez sentido. E quando a noite do final da vida chegar, teremos a sensação de que a vida valeu a pena ser vivida. E de que fez sentido existir neste planeta.

Acho desnecessário alguém utilizar as credenciais para ser melhor tratado. Uma frase que me dá calafrios é: “Você sabe com quem está falando?” E daí o autor da frase consegue o melhor dos serviços. Eu, tu, ele e eles merecem ser bem tratados, independentemente de quem é, do sobrenome que carrega e das relações sociais que construiu.

Voltando ao motivo que deu origem a esta reflexão. Dia desses eu fiz um exame. O médico não se apresentou. Eu, que ainda creio na humanidade, falei boa tarde e não ouvi resposta. Ele colocou o tal aparelho em mim e olhava fixamente a tela. Imaginei por um instante que a tela o encantava e ele poderia ser feliz. Daí eu tentei explicar o motivo da solicitação do exame, mas ele pediu que eu me calasse porque “está atrapalhando”. Assim fiquei por minutos enquanto ele ditava medidas dos achados. Entendi parte do ditado, mas como exerço outra especialidade na medicina, perguntei o resultado. Ouvi que o laudo seria entregue depois. E ele nunca mais foi visto por mim. Acho que ele não é capaz, neste momento, de se encantar com quase nada na profissão ou na vida.

Não tenho o desejo de dramatizar a assistência médica, porque não é este o caso. Não houve sequelas físicas, visto que se tratava de um exame diagnóstico e não invasivo em uma paciente até onde se sabe saudável.

Mas as relações humanas, onde ficam? Como confiar em interações que não respeitam as necessidades humanas básicas dos envolvidos?

Eu acredito que humanos podem ser humanizados “de fábrica”, mas muitos perdem ao longo da vida os seus valores. E só aqueles que fazem o esforço de olhar para si próprios e para o mundo, resgatar os valores e preservá-los cotidianamente conseguem se manter realmente vivos e realmente humanizados.

A humanização pode ser estimulada por meio de autorreflexão individual e da vida em família e sociedade, da busca da espiritualidade, da cultura e das artes e de tantas outras maneiras. Mas há necessidade de se esforçar na busca; e esta depende de desejo individual em se manter humano.

A minha pergunta é como resgatar a humanidade naqueles que a perderam e nem se deram conta disso. Eu ainda não sei a resposta, mas tenho certeza que é necessário buscar valores.

Ou o problema seria maior e, talvez, alguns perderam o sentido da própria existência?

E quando este humano que perdeu o sentido da própria vida é um médico. Suas ações, possivelmente transcenderão para prática profissional e para aqueles que são atendidos por humanos desumanizados e que não merecem sofrer além de seus padecimentos.

É, nós, os tais seres humanos, ainda temos muito aprender em humanização.

* Ursula Bueno do Prado Guirro é médica anestesiologista, mestre e doutora em Medicina, professora de Bioética e Cuidados Paliativos do curso de Medicina da UFPR e conselheira do CRM-PR. Atua com humanização e cuidados na terminalidade da vida.

**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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