Inteligência artificial: aliada ou inimiga do médico?

Guilherme Augusto Murta e Paulo Serino de Souza

As ferramentas fazem parte do sucesso evolutivo do ser humano quanto à sobrevivência frente a um ambiente naturalmente hostil. O desenvolvimento de ferramentas rudimentares para mais elaboradas contribuiu para avançar como sociedade. Nos últimos séculos, a energia motriz que passou da mão de obra humana para outras fontes, como o carvão, petróleo e a energia elétrica, possibilitando um avanço exponencial na eficiência das ferramentas, que agora contam com motores, processos de fabricação em linhas de produção. Isto alavancou a produtividade, possibilitando que o homem se ocupasse menos de atividades braçais, dedicando-se aos processos intelectuais.

Nas últimas décadas, estamos passando por outra revolução, também impulsionada por uma ferramenta que, desta vez, potencializa o intelecto humano: os computadores. Os circuitos integrados em chips possibilitaram a inédita análise e velocidade de processamento de dados, bem como a capacidade de armazenamento imensa, superando estas funções naturais da espécie humana. Outra tecnologia se adaptou brilhantemente aos computadores como meio de transmissão de dados a distância, entre duas ou mais máquinas: a internet.

A sinergia entre a internet e os computadores possibilitou de um lado dados intercambiáveis, com atualizações em tempo real, e de outro o computador, com capacidade suficiente de coletar, analisar e processar as informações, transformando-as em produto desejável de acordo com a programação de base. Esta, pode, inclusive, estimular o próprio sistema a evoluir. O sistema, denominado de Deep Learning (aprendizagem profunda), utiliza rede de funcionamento neural para, a partir de dados e interpretação parametrizada, chegar a conclusões acertadas. Com esta tecnologia, por exemplo, há possibilidade dos sites identificarem o comportamento dos consumidores individualmente para, então, ofertar o produto mais provável de compra. Enquanto a pessoa navega na internet por motivos quaisquer, há banners sinalizando ofertas de produtos já identificados como potencial interesse do consumidor.

Nessa nova revolução, a ferramenta tecnológica possibilitou substituir de forma mais eficiente, produtiva e exata o propósito pela qual ela foi desenvolvida, poupando a mão de obra intelectual humana deste labor e recursos financeiros. Não é surpresa que na área da saúde, que tem alto custo de mão de obra, esta tecnologia não tardou a ser proposta.

Uma das áreas da medicina que houve maior avanço do uso dessa ferramenta foi na radiologia. A especialidade médica, tradicionalmente na vanguarda em inovações tecnológicas, utiliza aparelhos que integram conceitos médicos, físicos e eletrônicos através de equipamentos que permitem identificar visualmente patologias sem invadir mecanicamente os tecidos. Não por acaso, o banco de imagens relacionando achados com patologias é extenso. A relação matricial entre imagens e doenças é campo fértil para o Deep Learning. Estudos contemporâneos apontam que a tecnologia é capaz de analisar um número expressivamente superior de exames realizados e com mais precisão, para algumas patologias, ao se comparar com mão de obra do médico1.

Embora este achado possa assustar os radiologistas em relação ao futuro profissional, há interpretações2 no sentido de ser uma oportunidade de mudar o papel desses profissionais em ações que não serão substituíveis pelas máquinas. Os radiologistas poderão utilizar o apoio providenciado por essas máquinas, no que se refere à análise para interpretar os resultados, e direcionar os esforços para avaliar o resultado e orientar aos pacientes sobre o significado do diagnóstico de imagem, bem como explicar sobre a evolução clínica e encaminhamento aos terapêutico. Até mesmo, ainda, serem envolvidos para decisões terapêuticas. É a oportunidade de aproximar o radiologista do paciente, investindo o tempo para humanização de forma mais efetiva na relação médico-paciente. Para que isto prospere, é importante buscar a aplicação destes conceitos nos modelos de negócio de clínicas de diagnóstico de imagem. A ação colaborativa tende a frutificar, como apontou o estudo da Accenture de 20183, ao estimar que o uso da IA com a colaboração humana irá embalar o mercado de trabalho mundial, com um crescimento global estimado de 10% em 2020.

Porém, a preocupação dos radiologistas em perder posições para máquinas ocupa lugar de destaque em estudos e discussões1,2.No Brasil, no momento, isto não seria viável por regulações diversas que impedem que o laudo emitido por uma máquina seja equivalente a um emitido por médico. Mas, pensando em um eventual futuro, em que fosse possível, seria interessante avançar no raciocínio da perda de posições de emprego de radiologistas para máquinas. Faço questão de ressaltar que esta linha de raciocínio, no momento, é apenas um exercício lógico e dedutivo, sem validade prática devido aos bloqueios legais e éticos vigentes, bem como limitações ainda observadas na tecnologia atual.

Como ponto de partida, utilizaremos os dados disponibilizados pelo material “Demografia Médica no Brasil 2018”, pesquisa elaborada pela Universidade de São Paulo (USP), com apoio institucional do Conselho Federal de Medicina(CFM)4.

No Brasil há 451.777 médicos em atividade. Destes, 37,5% não têm especialidade registrada. Dentre as especialidades mais representativas estão: Clínica Médica,com 42.728 profissionais (11,2%); Pediatria, com 39.234 (10,3%); Cirurgia Geral, com 30.415 (8,9%); Ginecologia e Obstetrícia, com 30.415 (8%); e Anestesiologia, com 23.021(6%). Os radiologistas ocupam a 10ª colocação(entre 54) em número de especialistas, contando com 12.233 (3,2%).

Em considerando a hipótese de um eventual futuro de dificuldades de emprego pela radiologia, devido a IA, além destes 12.233 especialistas, há que considerar mais 1.290 residentes de radiologia prestes a entrar no mercado. Estes profissionais precisarão se recolocar, possivelmente em alguma outra área da medicina. Para entender a perspectiva de médicos no país, é interessante verificarmos a proporção em relação à população e distribuição geográfica.

Enquanto no Brasil há 2,1 médicos por 1.000 habitantes, a média dos países da OCDE é 3,4. Ao comparar com os países mais desenvolvidos, ficamos ainda mais defasados, sendo exemplos os Estados Unidos (2,8), Israel (3,1), Alemanha(4,5), Noruega e Áustria (5,1).Para agravar mais a situação, no Brasil observamos várias realidades dependendo da região; de um extremo, no Norte, 1.16 médico/1.000 habitantes; em outro lado, no Sudeste, 2,81. Sob outra perspectiva, independentemente da reunião do país, há menos de 1 médico/1.000 habitantes em cidades com menos de 50.000 pessoas. Por outro lado, em centros urbanos acima de 500 mil habitantes, a razão sobe para 4,33.

Nas cidades menores e em regiões do país onde a taxa de médicos é extremamente baixa, é flagrante o desabastecimento assistencial. Para médicos radiologistas disponíveis para novos horizontes profissionais, o campo fértil de aproveitamento estaria concentrado nessas regiões carentes de cuidado médico, especialmente assistência primária à saúde. O radiologista que tenha intenção de se mudar para esta lacuna assistencial, teria demanda de trabalhar como generalista, o que já pode ser uma dificuldade frente à formação dirigida para radiologia na pós-graduação de três anos e outros tantos em prática profissional subsequente. Além disso, locais em que há falta de médicos, não raro, também não contam com estrutura necessária para a prática profissional de boa qualidade. Quanto à remuneração, apesar de propostas promissoras nos confins do Brasil, há relatos de contratos que não são honrados na prática, estando o profissional vulnerável financeiramente, o que é decisivo para que decida retornar a um grande centro. Ou seja, teria que mudar a especialidade para outra área que não domina, sem estrutura de apoio, sem garantia de salário ou estabilidade, além de haver custos ligados à mudança e adaptação familiar. Muito improvável deste direcionamento prosperar, mesmo havendo demanda de assistência médica.

Parte dessas dificuldades pode ser contornada com a iniciativa do governo federal, em agosto de 2019, ao divulgar oficialmente o “Médicos pelo Brasil”5. Este programa prevê remuneração transparente, plano de carreira e ainda contempla a formação em “Medicina de Família e Comunidade”, com apoio em EAD e tutor médico, durante os dois primeiros anos. A iniciativa é tão relevante que houve declaração do CFM como a concretização de uma “luta de 30 anos”6, entendendo como uma carreira federal para médicos. Este pacote de medidas poderá ser muito importante ao radiologista que preveja o cenário de dificuldades frente à IA, que desejar mudar o escopo de suas atividades.

É importante constatar que, ao longo da história, as ferramentas inovadoras tiveram importância ímpar, sendo responsáveis por batizar eras e mudar não apenas uma atividade específica, mas de produzir uma reação em cadeira na cultura, sociedade, economia e qualidade de vida. A inteligência artificial marca um novo período da humanidade em que poderemos utilizar os benefícios, cuja extensão ainda não conseguimos mensurar dado ao dinamismo em evolução. Certamente precisamos encontrar maneiras de aproveitar os benefícios da automatização e incluir o trabalho humano de maneira inteligente e sensível para colhermos os melhores frutos.

 *Dr. Guilherme Augusto Murta (CRM-PR 24.287) é médico do Trabalho e gerente de Saúde e Segurança no Trabalho do Grupo Marista.

**Paulo Serino de Souza é superintendente do Grupo Marista.

***As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

 

REFERÊNCIAS

  1. -      Disponível em https://www.forbes.com/sites/robertpearl/2018/03/13/artificial-intelligence-in-healthcare/#2978d47c1d75
  2. -      Pesapane F, Codari M, Sardanelli F. Artificial intelligence in medical imaging: threatoropportunity? Radiologistsagainattheforefrontofinnovation in medicine. EurRadiol Exp. 2018;2(1):35. Published 2018 Oct 24. doi:10.1186/s41747-018-0061-6. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6199205/
  3. -      Disponível em https://singularityhub.com/2019/01/01/ai-will-create-millions-more-jobs-than-it-will-destroy-heres-how/
  4. -      Disponível em http://www.flip3d.com.br/web/pub/cfm/index10/?numero=15&edicao=4278#page/1
  5. -      Disponível em http://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45640-18-mil-vagas-para-medicos-pelo-brasil
  6. -      Disponível em http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28366:2019-08-02-13-53-17&catid=3

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