Liberdade médica em risco

Nos dias atuais, em que o sistema de saúde do país já sofre com inúmeros e sérios problemas, setores do poder público vêm atuando de forma a levar a assistência à saúde a verdadeiro colapso, colocando em risco a lógica de funcionamento do sistema e, conseqüentemente, milhões de pacientes, médicos, hospitais e profissionais da área da saúde. A novidade diz respeito a fiscalização dirigida que o Ministério do Trabalho está promovendo em estabelecimentos hospitalares de todo o país. Durante as fiscalizações os agentes, de forma praticamente padronizada, solicitam aos hospitais nomes dos médicos que atuam ou atuaram em suas dependências ou com os quais mantêm ou mantiveram algum relacionamento. A seguir, sem ouvir qualquer das partes e sem maiores diligências, promovem a autuação dos hospitais, alegando que eles deveriam assinar a carteira de trabalho dos médicos, que seriam, na ótica da fiscalização, empregados dos hospitais.


Ocorre que, como é sabido e foi assim desde o início dos tempos, os médicos em regra não são empregados de hospitais, mas profissionais liberais e autônomos que assim exercem a medicina, atendendo seus pacientes, de forma individual ou organizados em pessoas jurídicas, tais como clínicas, cooperativas ou sociedades médicas. Nessas circunstâncias, não há relação de emprego, já que os ditos profissionais, além de não possuir subordinação em relação aos hospitais, não recebem remuneração ou honorários dos hospitais, mas de seus pacientes (clientes) ou dos Planos de Saúde e Seguradoras, com os quais ele ou a pessoa jurídica que integra mantêm convênios. Exercem com plena autonomia e liberdade a medicina, atuando simultaneamente em vários hospitais, públicos ou privados, e em consultórios ou clínicas particulares.


O corpo clínico de um hospital não se confunde com quadro de médicos-empregados O Corpo Clínico é o conjunto de médicos de uma instituição com a incumbência de prestar assistência aos pacientes que a procuram, gozando de autonomia profissional, técnica, científica, política e cultural (Resolução CFM 1.481/97). Mesmo com todo o avanço tecnológico, os hospitais não exercem a medicina,. Não poderia ser diferente, pois não examinam, não fazem o diagnóstico, não elaboram as receitas, não prescrevem a internação, não operam, não atestam quadros clínicos e não dão alta aos pacientes. Igualmente, não cuidam da administração de planos, seguros assistenciais.


Assim, estabelecimentos de saúde, médicos e empresas operadoras de planos/seguros de assistência à saúde exercem atividades distintas, autônomas e independentes embora compatíveis e harmônicas, concorrendo de forma organizada para uma finalidade comum a todos: o bom atendimento ao paciente. Pensar o contrário seria o mesmo que concluir que ícones da medicina, tais como Pitanguy e Zerbini, foram empregados do hospital tal ou qual apenas por ali atenderem ou operarem seus pacientes. Dessa forma, apesar de existir a figura do médico-empregado, ela é a exceção e não pode ser transformada em regra ou mesmo ser imposta por setores do poder público.


Primeiramente, porque tal conduta atentaria contra sagrados preceitos constitucionais que asseguram a liberdade do cidadão para o exercício da profissão, da atividade econômica e para se unir a outros com objetivos comuns, organizando-se como pessoa jurídica. Em segundo lugar, porque tal prática, além de arbitrária, significaria um verdadeiro caos no sistema de saúde do país.


Ademais, nessa situação absurda os médicos ficariam privados de seus honorários que pertenceriam aos hospitais. Como é notório, a relação empregatícia traz consigo pesados ônus de natureza fiscal e trabalhista, estimado hoje em mais de 100% daquilo que o empregado recebe como salário. Portanto, se tal ônus for indevidamente imposto à relação médico-hospitalar, ou o paciente pagará o dobro pelo atendimento, ou o médico, os hospitais e os planos de saúde receberão apenas a metade, sendo certo que todos serão levados à inviabilidade, já que hoje atuam com uma já apertada margem de operação. Mesmo os hospitais públicos, filantrópicos ou ligados ao SUS, que atualmente já se encontram em situação alarmante, não estarão livres, uma vez que terão que suportar pesados encargos, que, na prática, inviabilizam suas atividades e isso sem falar no passivo monstruoso relativo ao período pretérito à fiscalização.


O fato é um só: a liberdade médica se encontra em risco e o efeito disso é uma profunda alteração do modelo de saúde do país, com pesados e indevidos ônus na assistência à saúde. Portanto, a sociedade há de estar atenta e vigilante, já que se pretende impor a ela mais esse insuportável ônus que trará consigo, ainda, verdadeira balbúrdia e desorganização do sistema, tudo com prejuízos incalculáveis para a qualidade da medicina e da saúde de nosso país. Posto isso, resta apenas uma indagação. A quem interessa a sublevação da organização médica existente?



Artigo escrito pelo Dr. José Antônio de Lima, médico e presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), e publicado no jornal Correio Braziliense em 21 de setembro de 2008.

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