23/10/2007

Medicina de meio século atrás

Por falta de equipamento, cirurgiões usam furadeiras elétricas em operações na cabeça



A falta de equipamentos adequados tem levado neurocirurgiões de hospitais públicos a utilizarem furadeiras de marcenaria para abrir a cabeça de pacientes durante operações, procedimento que deixou de ser feito na rede particular há quase meio século. Brocas descartáveis também são reutilizadas, aumentando os riscos de lesões no cérebro. As denúncias, feitas por médicos de unidades da Região Metropolitana, foram encaminhadas ao vereador Carlos Eduardo (PSB), que prometeu entregar um relatório ao Ministério Público estadual, pedindo providências.

Secretaria estadual de Saúde disse que já comprou equipamentos adequados para as cirurgias e que, até sexta-feira, eles estarão em uso nos hospitais de referência. Segundo as denúncias, os quatro hospitais estaduais com setor de neurocirurgia na Região Metropolitana - Azevedo Lima, em Niterói; Saracuruna, em Duque de Caxias; Rocha Faria, em Campo Grande; e Getúlio Vargas, na Penha - além do municipal Souza Aguiar, no Centro, só contam com furadeiras elétricas para a abertura de crânios. Juntas, essas unidades fazem uma média de 125 operações neurológicas por mês.

Fotos tiradas por médicos do Hospital Azevedo Lima mostram o momento em que neurocirurgiões empregam uma furadeira elétrica, do tipo das usadas em obras, para abrir o crânio de um jovem de 24 anos, vítima de um acidente de moto, em maio deste ano. O rapaz, que tinha uma hemorragia no cérebro, sobreviveu à cirurgia. De acordo com médicos do hospital, a furadeira é o único equipamento disponível para esse tipo de procedimento.

- Existe uma série de implicações no uso de furadeiras de obra, que são equipamentos de alto impacto. Elas fazem trepidar muito a cabeça, aumentando o risco de hemorragia. Outro problema é a questão da esterilização. Como têm fio e partes de plástico, essas furadeiras não podem ser esterilizadas em autoclaves, sob pena de derreterem. Por isso, utilizamos álcool, o que não é o mais adequado - afirma um neurocirurgião da rede estadual, que pediu para não ser identificado


Também há falta de neurocirurgiões

No Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, o uso de furadeiras elétricas também é comum na emergência, segundo um médico. Ele relata que, além disso, faltam materiais essenciais, como brocas descartáveis: - Os médicos acabam trazendo brocas que foram usadas em hospitais particulares, para reutilização. O procedimento é perigoso. As brocas de neurocirurgia são auto-estáticas: toda vez que atingem uma superfície mole, como o cérebro, param de girar automaticamente, evitando lesões. A reutilização constante das brocas descartáveis pode levar a falhas no sistema, colocando em risco os pacientes.

O uso de furadeiras elétricas em neurocirurgia foi comum na rede particular até a década de 60, lembra o neurocirurgião Arnaldo Viana, atualmente deputado federal (PDT-RJ). A partir de então, equipamentos mais adequados, chamados craniótomos, passaram a ser empregados. O preço deles gira em torno de R$ 80 mil. Entre as vantagens, está o fato de poderem ser esterilizados em autoclaves e causarem impacto menor aos pacientes.

- Ao se lidar com vidas humanas, sempre devemos primar pelo uso de tecnologia de ponta. Mas, infelizmente, os médicos do serviço público sofrem com uma deficiência muito grande de equipamentos - afirma o diretor da Câmara Técnica de Neurocirurgia do Conselho Regional de Medicina (Cremerj), Aloisio Carlos Tortelly.

Para o vereador Carlos Eduardo, presidente da Comissão de Saúde da Câmara do Rio, as denúncias mostram que a rede pública da Região Metropolitana como um todo tem problemas sérios de atendimento. - Médicos e pacientes não merecem ser submetidos a essas condições deploráveis de exercício da medicina - diz.

Um levantamento feito pelo vereador revela que, além das condições precárias, faltam neurocirurgiões na rede estadual. O quadro mais grave é o da Zona Oeste, onde somente uma unidade, o Hospital Rocha Faria, tem a especialidade.

Às quintas, às sextas-feiras (noite), aos sábados e aos domingos, dias em que acidentes de trânsito são freqüentes, não há médicos de plantão. Acidentados precisam ser removidos para unidades distantes, como o Souza Aguiar.

No Azevedo Lima, faltam neurocirurgiões às quintas, às sextas-feiras e aos sábados. Já no Hospital Getúlio Vargas, os plantões de sábado e domingo estão vagos. De acordo com o subsecretário estadual de Atenção à Saúde, Carlos Armando Nascimento, craniótomos novos já foram comprados e serão distribuídos até sexta-feira aos hospitais Azevedo Lima e de Saracuruna.Ele também disse que vai apurar por que furadeiras elétricas, que não podem ser esterilizadas em autoclaves, foram empregadas em Niterói e os motivos de brocas descartáveis estarem sendo reutilizadas.


Estado criará pólos para atendimento

Para compensar a escassez de neurocirurgiões, acrescenta Nascimento, o atendimento será concentrado nos hospitais Azevedo Lima, de Saracuruna e, possivelmente, no Getúlio Vargas.

- Recentemente tivemos demissões na área de neurocirurgia, o que deixou alguns plantões descobertos.

Os neurocirurgiões querem ser contratados através de uma cooperativa, recebendo R$ 16 mil por mês, o que está além das possibilidades orçamentárias do estado. Por isso, vamos estabelecer pólos de atendimento com os neurocirurgiões que permanecem em serviço, onde haverá profissionais dia e noite - garante.

O diretor do Hospital da Posse, Marcos de Sousa, acusa os neurocirurgiões de, movidos por interesses particulares, tentarem desestabilizar a unidade. Ele afirma que o hospital conta com um craniótomo e equipamentos manuais, sendo desnecessário o uso de furadeiras elétricas.

- Temos craniótomo, que poucos hospitais públicos possuem, e somos referência em neurocirurgia.

A questão é que neurocirurgiões, que formaram uma cooperativa, têm interesse em tentar vender serviços para as emergências a preços exorbitantes - diz Sousa, que também nega que haja falta de brocas descartáveis no hospital.



Vagas no chão

Pacientes são internados fora de leito


A superlotação dos hospitais públicos na Região Metropolitana do Rio obriga médicos e enfermeiros a internarem pacientes no chão, devido à falta de leitos. No Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), que vive atualmente um surto de uma bactéria resistente a medicamentos que já provocou até mortes, três homens com lesões na coluna foram fotografados por médicos, em abril, em colchões no chão, atrás de um balcão na emergência.

A situação também se repete no Azevedo Lima, em Niterói. Em agosto, uma paciente com suspeita de lesão cervical ficou horas numa maca no chão da emergência, por falta de leitos. Ao fundo, é possível ver, nas imagens feitas por profissionais de saúde, uma paciente grávida seminua numa maca. Entre as conseqüências da internação de doentes no chão, está o aumento dos riscos de infecções e traumatismos, lembra o vereador Carlos Eduardo, presidente da Comissão de Saúde da Câmara.

- O que mais chama a atenção, contudo, é o estado de degradação humana. Pessoas que, muitas vezes, já são excluídas, têm sua dignidade ofendida justamente quando mais precisam de atenção e carinho - afirma o vereador.

A direção do HGB disse que a unidade sofre com o excesso de demanda, devido à falta de condições dos hospitais da Zona Oeste e da Baixada Fluminense, e afirmou que, como a nova direção assumiu há dois meses, não iria comentar uma foto tirada em abril.

Desde o último dia 12, contudo, o atendimento na emergência foi restringido, devido à contaminação de quase 50 pacientes por uma superbactéria.


Fonte: O Globo




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