Missão no Haiti: Tratamento do câncer sem fronteiras

Phillipe Abreu

Pela manhã, pedi um pão com manteiga e café com leite na padaria e lá se foram 5 reais. Difícil imaginar que 25% de toda a população do Haiti vive com menos que o equivalente a 5 reais por dia e outros quase 60% vivem com menos que 10 reais. Um ambiente como esse, com 85% das pessoas vivendo abaixo das linhas da pobreza e da extrema pobreza e 1% detendo 50% dos recursos do país, gera todas as condições para o avanço da violência, desesperança e em alguns casos até à barbárie. Soma-se a isso uma região propícia a desastres naturais, como terremotos e furacões, e uma sociedade de corrupção em todas as esferas de governo. O resultado é inevitavelmente ruim.

Se num primeiro momento a sensação é de voltar no tempo ao desembarcar em Porto Príncipe, logo se percebe o porquê de uma expectativa de vida de um Brasil de 50 anos atrás. Não há coleta de lixo urbano, sendo tudo acumulado ao redor das calçadas. Não há iluminação pública; após o pôr-do-sol só se enxerga o farol dos carros. Não há água potável nas torneiras, muito menos saneamento básico e esgoto encanado. Não há serviço de correios e entregas, porque os endereços e números de casas não existem. As pessoas se localizam por referenciais naturais e macrorregiões da cidade. Hospitais, hotéis, supermercados, condomínios, todos protegidos por seguranças com escopetas e metralhadoras. Agora imagine diagnosticar e tratar câncer neste ambiente.

É o desafio aceito pela ONG IHI (Innovating Health International), que há quatro anos iniciou um programa de prevenção e tratamento oncológico, baseado na arrecadação de fundos internacionais para compra de quimioterápicos, e a organização de missões de cirurgiões para realizar mutirões periódicos. Sem nenhuma máquina de radioterapia no país, a cirurgia torna-se a única chance de cura para a maioria dos pacientes.

clique para ampliarclique para ampliarA equipe da missão era formada pelo Dr. Phillipe Abreu (cirurgião), Dra. Gail Granowitz (anestesista de New Jersey, EUA), Dra. Raphaella Ferreira (médica de Curitiba) e Danilo Saavedra (estudante de medicina da UP, Curitiba). (Foto: Arquivo pessoal)

Realizamos há poucos dias a terceira missão voluntária brasileira pela IHI desde 2018. Já foram quase 50 pacientes operados e um benefício real para essa população, que vive em verdadeiro desalento. Desde a primeira missão, desenvolvemos a ideia de treinamento de cirurgiões locais para que a continuidade do programa não se limite aos mutirões internacionais. Os primeiros dois haitianos em treinamento já executaram procedimentos oncológicos complexos de forma independente (sob supervisão) desta vez. Além disso, iniciamos a participação voluntária de estudantes de medicina brasileiros, e firmamos um acordo para futuras missões de cirurgiões e estudantes através do Capítulo do Paraná do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

Como essa população consegue então sorrir? O Haiti serviu de “reservatório de escravos” por diversos anos: navios negreiros deixavam as crianças na parte francesa da ilha e levavam seus pais para serem escravos na América do Norte. Estes (agora) órfãos permaneciam na ilha para crescerem e ganharem peso até que tivessem condições de trabalhar. A localização no Caribe fazia com que as subsequentes viagens fossem bem mais baratas que o transporte desde a África. Segundo país a declarar independência nas Américas, em 1804 (os Estados Unidos foram o primeiro), o povo haitiano preserva suas origens e cultiva a genuína alegria da liberdade. Apesar de tantas adversidades, a perseverança e bondade da população nos encantam e nos motivam.

Sem dúvida, manteremos este programa voluntariado como missão de vida, missão familiar e profissional. Todos são bem-vindos para ajudar. Toda doação é necessária. E é indescritível a gratidão ao ouvir “mesi, dok” (obrigado, doutor – em bom creole) a cada paciente operado.

* Dr. Phillipe Geraldo Teixeira de Abreu Reis é médico formado pela UFPR (2012), com títulos de especialista em cirurgia geral e cirurgia oncológica. Tem inscrição primária no CRM-PR (30.296) e secundária no Cremesp. Recém concluiu a terceira missão voluntária no Haiti e agora inicia projeto de pesquisa em Toronto, Canadá. (dr.PhillipeAbreu@gmail.com)

**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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