04/07/2007

"Nossa política antidrogas está errada"

ENTREVISTA COM O MÉDICO RONALDO LARANJEIRA

A ONU revela que o mundo caminha para a estabilização do consumo, mas no Brasil cresce o número de usuários



O último estudo feito pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), divulgado na terça- feira 26, trouxe uma ótima notícia para os países europeus e Estados Unidos. Pela primeira vez em muitos anos, os dados indicam uma animadora tendência à estabilização do consumo de drogas ilícitas, como a cocaína e o ecstasy. O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) é considerado um retrato confiável da situação mundial e serve para avaliar o funcionamento das políticas nacionais e globais de combate às drogas. O Brasil, infelizmente, caminha na direção oposta. O levantamento mostrou que o consumo de cocaína subiu entre os brasileiros nos últimos quatro anos. A cocaína é a droga que mais rapidamente causa danos à saúde. Mas os líderes do consumo ainda são o cigarro, o álcool e a maconha. "O número de usuários de drogas cresce aproximadamente 10% ao ano. Isso revela que a política de combate às drogas que temos não dá o resultado necessário e tem de mudar", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, 50 anos e pai de três crianças menores de sete anos. Ph.D. pela Universidade de Londres, ele coordena a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo e o Departamento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria. Laranjeira concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ:


ISTOÉ - O relatório da ONU indica que há uma tendência de crescimento do consumo de drogas na América do Sul e no Brasil. Por que aumenta?

Ronaldo Laranjeira - No Brasil, os dados são pouco confiáveis. A ONU utiliza as estimativas do Cebrid, um centro de referência de levantamentos populacionais. São os dados mais seguros que temos. A ONU trabalhou com um sistema de comparação, mostrando uma tendência de crescimento das drogas no Brasil. Isso é mais importante do que os números em si. Enquanto no mundo a tendência é pela estabilidade ou diminuição, aqui o consumo cresce cerca de 10%. Tenho uma teoria que explica esse aumento. Na maioria dos países, os programas procuram valorizar a idéia de as pessoas não usarem drogas. Essa abordagem faz com que os dependentes entrem em tratamento para não consumirem mais drogas. Aqui, há dez anos, o Ministério da Saúde adota a política de redução de danos. Se vai usar, que use de uma forma menos lesiva.


ISTOÉ - E por que essa política não reduz o consumo?

Laranjeira - Nos ambulatórios para dependentes químicos, se aparece algum usuário de crack, o aconselhamento é feito no sentido de trocar a droga por outra menos forte. Não existe estrutura de apoio efetivo a quem precisa de tratamento para deixar de usar. O Ministério fechou clínicas de internação. As que existem são privadas. Com isso, muitas pessoas não têm acesso ao tratamento correto. Aqui há só 80 centros financiados pelo governo. Ou seja, temos um centro para cada dois milhões de habitantes. Na Inglaterra, há um centro para cada 100 mil habitantes. É um número 20 vezes menor. A Associação Brasileira de Psiquiatria e a Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Outras Drogas se opõem a isso. A nossa política antidrogas está errada.


ISTOÉ - O que deveria mudar?

Laranjeira - A redução de danos deveria ser um complemento, mas virou prioridade. Dar agulhas e seringas tem de ser feito, mas não há evidência de que fornecer cachimbo para fumar crack seja uma medida eficaz. Na Holanda, 80% dos usuários estão em contato com algum sistema de tratamento. Recebem as práticas da redução de danos, mas têm assistência para se internar e parar. Por outro lado, quem já viu no Brasil uma campanha vigorosa em relação a não experimentar a maconha? Estamos com uma política tolerante: falamos como usar de forma segura, mas não abordamos com a ênfase necessária os problemas que as drogas causam.



"Somos tolerantes. Não abordamos com a ênfase necessária os problemas que as drogas causam"


ISTOÉ - Quais são os acertos do atual programa do governo?

Laranjeira - Acho que a única evidência de que funciona é em relação aos injetáveis. A política de redução de danos diminuiu o número de usuários infectados pelo HIV. Mas é um dado pequeno no Brasil. Há anos que não vejo um usuário de drogas injetáveis no consultório. As pessoas optaram por fumar crack em vez de se injetar.


ISTOÉ - O consumo de drogas cresce em que perfil de usuários?

Laranjeira - Na realidade, não temos esses dados. Acredito que cresce em todas as classes sociais. No Brasil, o consumo maior fica nas regiões Sul e Sudeste. Se a economia melhorar e continuarmos com a política anêmica de prevenção e tratamento, o consumo vai aumentar mais ainda. Cresce a oferta e a procura. É uma questão de mercado. Por isso, o alerta a respeito da tendência de aumento no uso de drogas no Brasil deve ser levado muito a sério. Temos de lidar com isso como fizemos com a inflação. Se o programa não dá resultado, é preciso mudar a política. Já que ele existe há dez anos e não dá certo, temos de repensá-lo ou repensar as pessoas que o conduzem. Se o time não vai bem no campeonato, tem de mudar o técnico, como diz o Lula.


ISTOÉ - Quais são as drogas mais consumidas no País?

Laranjeira - Tem crescido mais o consumo da maconha e o da cocaína. Em alguns setores da classe média, o ecstasy. Elas são as principais. No caso da maconha, isso vem acontecendo há vários anos. Evidências científicas mostram que seu consumo - especialmente o precoce, aos 13 ou 14 anos - aumenta o risco de transtornos mentais, especialmente a esquizofrenia. Pelo menos 12% dos casos de esquizofrenia na Inglaterra foram desencadeados pelo uso de maconha. É grave. O Ministério da Saúde não faz alerta sobre esse perigo.

ISTOÉ - Há uma expansão do crack?

Laranjeira - Em São Paulo. No Rio não há muito porque os traficantes não deixam. Mesmo em São Paulo ele está mais relacionado com a periferia, com a pobreza. As pessoas que ficam muito tempo usando cocaína são mais vulneráveis. Aí, chega uma hora em que, na relação custobenefício do usuário, "fica melhor" usar o crack do que cocaína. Seu efeito surge mais rápido e, no final, ele acaba sendo mais barato. A classe média viciada em crack que atendo, como advogados e médicos, conta que tudo começou com cocaína.


ISTOÉ - Quanto o crack é letal?

Laranjeira - Estamos acabando de coletar dados do maior estudo feito no mundo. Não há nada tão longo. Pegamos os primeiros 130 usuários de crack internados em São Paulo, há 12 anos. Fizemos um acompanhamento depois de dois anos dessas internações. Em seguida, fizemos outro, cinco anos mais tarde. Agora estamos concluindo a análise desses usuários após 12 anos. A mortalidade é de quase 40% ao longo desse período. Nem leucemia mata tanto. A maioria dessas mortes é por causa da violência. Vimos que desse grupo ainda tem gente usando crack e que as famílias estão desgastadas. Notamos também que houve mais pacientes presos do que encaminhados para tratamento.


ISTOÉ - Qual é a droga mais perigosa?

Laranjeira - Toda droga produz dano. A questão é quanto tempo ela demora para isso. O cigarro demora 20, 30 anos para causar dano. Mas, de longe, o cigarro é a droga que mais mata. O crack é mais rápido. Os danos dependem da intensidade de uso.


ISTOÉ - Recentemente houve uma discussão em torno das cartilhas de redução de danos. Algumas pessoas acreditam que esse tipo de material é um estímulo ao consumo. O que o sr. pensa a esse respeito?

Laranjeira - Não concordo com isso. Cartilhas bem feitas não estimulam o consumo. Mas houve uma cartilha recentemente criticada, a da Parada Gay em São Paulo, que perdeu a chance de falar dos riscos do uso das drogas. O material se concentrou mais em orientar o consumo com baixo risco do que em alertar para o risco do uso. É o que critico de modo geral. É uma opção de política equivocada. Acho que as duas coisas podem ser feitas. Mas se ficarmos só cuidando de quem usa, esquecemos de fazer campanhas para as pessoas não usarem. Isso ocorre principalmente com o ecstasy, que é uma das drogas mais tóxicas que conheço para o cérebro. Pouco se fala de todos esses males relacionados às drogas no País. Estou concluindo agora um grande estudo patrocinado pelo governo que vai traçar o perfil dos consumidores de bebidas alcoólicas. Esse trabalho ficará pronto em agosto. Espero que o próprio governo utilize os dados para a formulação de políticas adequadas.


ISTOÉ - Existem campanhas de esclarecimento eficazes nas escolas? Em geral, elas criticam o consumo e advertem sobre as conseqüências, dizendo coisas como "a droga mata".

Laranjeira - Há muito poucas campanhas e isso é uma falha de extrema gravidade. No setor público, praticamente nada. O único trabalho que conheço é o da Polícia, que consiste em dar palestra. Não há verbas e nem cabeça pensando nessas questões. Deixou-se a escola de lado. Não há programa de prevenção para jovens de risco, fora ou dentro da escola. Teríamos de fazer programas de cuidados para essa população. As ONGs fazem, mas é pouco. Há algumas boas como o grupo Amor Exigente. São familiares de usuários que cuidam das próprias famílias.




"Há muito poucas campanhas de esclarecimento nas escolas. E isso é uma falha de extrema gravidade"

ISTOÉ - O sr. acha que a liberação das drogas ajudaria a diminuir o consumo?

Laranjeira - Primeiro é difícil fazer isso. Segundo, há evidências demonstrando que, se as drogas forem legalizadas, o consumo vai aumentar. Isso pode diminuir a violência do tráfico, mas pode aumentar a violência entre os usuários e atingir outras pessoas. É ingenuidade achar que isso vai desmantelar a rede do tráfico, que os traficantes vão passar a vender flores em Ipanema. A gente não pode esquecer que a principal violência é a droga lícita, o álcool. Quando a prefeitura de Diadema determinou o fechamento de bares às 23 horas - lei que vai completar cinco anos -, houve uma redução no número de homicídios.


ISTOÉ - Muita gente diz fumar maconha socialmente, apesar de ser proibido no Brasil. Em outros países, há balas, bebidas e comidas com maconha. Quando se pode dizer que uma pessoa é dependente, do ponto de vista médico?

Laranjeira - Tem gente que ocasionalmente usa maconha. Mas a tendência é haver um número maior de usuários com consumo regular. Aumentou a disponibilidade da maconha na nossa sociedade. O que vai acontecer? Há três importantes evidências a seu respeito: ela piora o desempenho na escola, aumenta as chances de transtornos mentais - especialmente a esquizofrenia - e diminui o pique para fazer as coisas. Quem é usuário regular tem tendência de adiar tudo. O número desses consumidores diários vem aumentado. O número de quem usa no final de semana é muito pequeno. Quem usa regularmente vai ter mais ansiedade, mais depressão.


ISTOÉ - Diz-se que quem usa drogas procura entorpecer sensações ruins. Está correto?

Laranjeira - É mais pelo prazer do que para tirar sensações negativas. O problema é que as drogas modificam os processos cerebrais, incapacitando os usuários para recorrer a outras fontes de prazer menos imediatas e intensas.



Fonte: revista Isto É.

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