O STF e os dilemas da saúde

Como resolver o dilema que envolve a decisão que privilegia os direitos individuais em detrimento do direito coletivo? E a quem cabe tal decisão? Estas são duas perguntas de extrema importância que deveriam fundamentar as discussões e decisões em curso no STF no tocante aos tratamentos de saúde.


As respostas parecem óbvias nos dias atuais, ou seja: as restrições econômicas, as questões sociais, as limitações educacionais e do uso do conhecimento disponível e o respeito aos direitos individuais e coletivos fazem com que as decisões que envolvem o cotidiano do ser humano necessitem ser mais orientadas e justificadas. A decisão em nome do indivíduo afeta o coletivo e a decisão coletiva impõe restrições aos indivíduos. Neste cenário, certamente não deveria caber ao Judiciário fazer escolhas em um ambiente de recursos escassos para a saúde. Aliás, a chegada de uma demanda à Justiça indica a falha do processo de decisão que envolve a liderança e os gestores do sistema de saúde. A decisão sobre o que (para quem e em que momento e circunstâncias) oferecer ao cidadão que necessita utilizar o sistema de saúde deveria ser eminentemente técnica e fundamentada nas melhores evidências científicas, reconhecendo, porém, a limitação de recursos existentes. Infelizmente (em qualquer país) não é mais possível oferecer tudo para todos; escolhas precisam ser feitas e dilemas e decisões difíceis, porém responsáveis precisam ser técnica e socialmente tomadas.


Importante frisar que o sistema de saúde é por natureza muito complexo e decisões simples, rápidas e para o curto-prazo (que invariavelmente atendem partes ou interesses políticos imediatos) são equivocadas, erradas e aumentam a entropia (bagunça) do sistema.


Embora seja um tema de difícil (mas possível) abordagem do ponto de vista prático, a única solução passa pela definição de políticas públicas fundamentadas em prioridades, e estabelecidas de algumas formas: doenças mais importantes, mais frequentes, mais graves, com maior sofrimento, maior chance de prevenção, e ainda que a literatura biomédica tenha evidências de que ao intervir - prevenção, diagnóstico, terapia e reabilitação - haverá um alívio do sofrimento ou "redução" da doença.
Doenças raras, especialmente importantes e que afetam minoridades, não podem também ser negligenciadas. Em outras palavras, num ambiente de escassez de recurso, não adianta ter políticas ou ações incompletas; diagnosticar e não ter tratamento para oferecer ao paciente - seja por não se saber como tratar a doença ou sabendo, mas não se viabilizar o tratamento. Em ambos os casos desperdiçamos recurso e aumentamos a angústia.


Desta forma, temos alguns desafios: a definição de prioridades exige um sistema maduro, com profissionais competentes do ponto de vista técnico, honestos e que respeitem alguns valores éticos e morais estabelecidos pela própria sociedade. A carência de dados nacionais para orientar algumas destas decisões e a qualificação dos profissionais envolvidos no processo são barreiras a transpor. Por fim, há o ônus político de aceitar publicamente que não dá para fazer tudo para todos. Infelizmente, pois não temos a "árvore do dinheiro", e temos que assumir que somos um país em desenvolvimento, num mundo globalizado e cheio de tentações de consumo, inclusive na saúde.


Apesar destes entraves, a melhor decisão em nome da sociedade deveria ser fundamentada por evidência e orientada pelas prioridades e políticas públicas coordenadas e sinérgicas, porém, que assumam de forma clara e transparente alguns "nãos". Estes "nãos", se bem definidos e justificados, não deveriam legitimar demandas judiciais. Uma nova interpretação do artigo 196 passa pelo reconhecimento da escassez de recurso do sistema de saúde e consequentes restrições, expressas antecipadamente e indistintamente, para todos aqueles que dependem do sistema de saúde, todos os cidadãos.


O que presenciamos atualmente é a fraqueza da liderança política (sentido amplo), o que nos impõe um tremendo ônus e estimula a troca de responsabilidade e decisões entre os poderes constituídos e demais atores!


Marcos Bosi Ferraz é médico, professor e diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde da Unifesp. É diretor de Economia Médica da AMB e autor do livro Dilemas e Escolhas do Sistema de Saúde.

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