O caráter profundamente humano do testamento vital

Leonardo Biscaia

A história da medicina é a história de duas marchas simultâneas; de um lado, o entendimento sobre o corpo humano e sobre o processo saúde-doença passou das causalidades exteriores ao homem para os conhecimentos que localizam no próprio ser humano a sede dos fenômenos biológicos de que é objeto. De outro lado, o ser humano, que uma vez foi tido como pertencente a entidades exteriores ao homem e sobrenaturais, com o tempo foi considerado como senhor de seu próprio corpo e possuidor da sua própria autonomia inalienável.

O Código de Ética Médica de 2010 compreende a saúde e a morte do ser humano como fenômenos ligados intrinsecamente à condição intensamente humana de cada paciente, ao mesmo tempo em que reconhece a centralidade dos conhecimentos científicos para a prática da medicina que valorize a dignidade do indivíduo. É por isso que cabe ao médico, por exemplo, aconselhar um casal em idade fértil sobre as diversas possibilidades de controle da natalidade; também pelos mesmos motivos a inseminação artificial dos casais inférteis é motivo de preocupação dos médicos.

O cuidado com a morte digna e autônoma dos pacientes representava um grande vazio, uma questão relevante que aguardava ser definida. Os grupos reacionários que agora se arvoram em defensoras da dignidade do ser humano, mas que, no entanto, combatem a autodeterminação do ser humano, foram vencidos.

A recente resolução do CFM que disciplina o testamento vital é a mostra do resultado dessa conquista, fruto da dupla evolução da medicina; ela mostra que o cidadão brasileiro, cônscio dos destinos da sua própria vida, livre de interferências etéreas e indefiníveis, mas dentro do seio de sua família e a partir de uma relação médico-paciente estabelecida, pode e deve decidir dignamente sobre os rumos da sua própria vida, de modo autônomo e sem qualquer consideração que o culpe caso decida abreviar sofrimentos. A vida e a morte do indivíduo não são mais uma determinação de uma vontade alheia a ele, humana ou sobrenatural.

Na verdade, o processo de tomada de consciência do ser humano e de elevação de seu estatuto teve sua inflexão em meados do século 18, quando os direitos civis foram definidos no Ocidente; nos séculos seguintes, os direitos políticos e sociais firmaram-se fortemente a partir da assunção de que o ser humano tem seu valor intrínseco e independente de considerações políticas ou religiosas. Na década de 1970, a Carta de Alma-Ata definiu como os direitos do ser humano deveriam ser operacionalizados para a promoção da saúde de modo a interferir no processo saúde-doença em seus vários determinantes: ações voltadas para a saúde materno-infantil, para doenças infecciosas, para o aprimoramento dos recursos humanos e naturais, para a integração das diversas categorias da área da saúde, para o envolvimento da comunidade em sentido amplo e para melhorias de infraestrutura em sentido amplo.

Seguindo o espírito que norteou o texto da Carta de Alma-Ata, a resolução do CFM pode ser considerada como seu corolário e assim comemorada, ao introduzir o elemento de humanidade e de respeito ao ser humano em seu momento mais derradeiro, mesmo que ele se dê em situações de grande sofrimento e angústia.

Artigo escrito por Leonardo Biscaia, médico e mestre em Saúde Pública pela ENSP-Fiocruz, douto­rando em Sociologia pela UFPR. Gustavo Biscaia de Lacerda, pós-doutor em Socio­lo­gia Política pela UFSC, é sociólogo da UFPR.

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