O outro lado: o médico como paciente


Nestas duas primeiras semanas de março recebi um diagnóstico inesperado: um nódulo suspeito na cabeça do pâncreas. Sou médico especialista em câncer de mama e tenho apenas 35 anos. Posso afir-mar que estou no melhor de minha capacidade pro-fissional e familiar com a chegada da nossa primei-ra filha. Por que então neste momento precisar enfrentar algo tão grave, já que tumores de pâncreas aparecem em pessoas idosas e têm uma mortalida-de muito alta? O que fiz para merecer isto?

O que vivenciei neste período foi algo que real-mente merece ser dividido. Nós, médicos, nos quei-xamos que a medicina vai mal, mas ser paciente é muito pior. Esperei em diversas salas de consultó-rios, de clínicas de radiologia, consultei internet, colegas e amigos, procurando uma esperança para minha situação. Igual a qualquer paciente que em uma situação grave faria. Alguns me olhavam com pena, como se eu já estivesse condenado, outros entusiasticamente me diziam que não poderia ser aquilo, afinal eu estava muito bem e tumores no pân-creas se acompanham de sinais e sintomas que eu não tinha. Isto me confortava um pouco, mas entre nós médicos existe um "ditado" de que tudo o que acontece no médico é diferente e muitas vezes pior do que o do restante da população. Então fiquei mais preocupado.

Já havia sentido relatos de pessoas que ao se aproximarem do fim começavam a ver e ouvir as coi-sas de maneira diferente. Isto aconteceu comigo. Estava tomando café nas proximidades da Rua XV de Novembro e de repente, ao repensar sobre tudo o que estava acontecendo, passei a prestar atenção mais aos sons, às pessoas e às cores daquele lugar. Como se em pouco tempo eu fosse perder tudo aqui-lo. Um rapaz veio me oferecer um bilhete de loteria e eu recusei. Deu vontade de dizer que poderia não me ser útil, mesmo que ganhasse, pois não saberia naquele momento dizer quanto tempo de vida me restava.

Então veio a cirurgia e o pós-operatório, que é dos mais difíceis entre todas as cirurgias. Fiquei 100% dependente de tudo e de todos. Não posso dizer que me senti humilhado, pequeno, apenas frá-gil. Em alguns momentos parecia que as coisas não voltariam ao normal e que eu ficaria naquele estado para sempre. Mas passou.

O que nós como seres humanos, independente-mente de sermos médicos ou pacientes, precisamos nesta hora? Competência técnica e humanismo da equipe que está lhe atendendo, apoio dos amigos e familiares e o carinho de cada funcionário que aden-trava ao nosso quarto. Descobri em minha esposa uma força tão grande para suportar o fato da mater-nidade e da chance de perda e sofrimento do mari-do. Recordo-me, por exemplo, de quando estava des-cendo de cadeira de rodas para fazer um exame, a funcionária me disse: "Doutor, fique tranqüilo, eu sei que o senhor faz reconstrução de mama e traz tan-ta felicidade para tantas mulheres, Deus não vai lhe abandonar justo neste momento".

Pois bem, tive um final feliz. Um tumor de muito baixo grau de malignidade, com uma chance próxi-ma de 100% de cura. Sem complicações cirúrgicas, que são freqüentes nestes casos.

E o que ficou?

Que a vida é um dom maravilhoso e que deve ser vivida em todos os seus momentos, cores, sons, sen-tidos e pessoas. É muito curta para ser desperdiça-da com coisas pequenas e infelizmente, a maioria das pessoas passa grande parte dela vangloriando--se das coisas pequenas que conseguiu fazer e das grandes que deixou para trás. A fragilidade de cada um de nós é o que nos une a todos. Pessoas notáveis descobriram muito cedo tudo isto e fizeram de suas vidas um modelo a ser seguido por muitas gerações na história da humanidade - imortalizaram-se. Por sermos tão frágeis é que não podemos deixar de ser-mos unidos e termos a humildade de reconhecermos o milagre da criação em tudo o que fazemos.



Cícero de Andrade Urban é professor de Medicina do Centro Universitário Positivo (UnicenP) e colaborador do Instituto de Ciência e Fé.

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