30/06/2010

Patrocínio para viagem de médico será limitado

Médicos vão ter restrições para viagens patrocinadas
Laboratórios só poderão bancar a ida dos que forem falar em congressos. Conselho Federal de Medicina prepara acordo com indústria farmacêutica; meta é criar transparência




Médicos brasileiros só poderão viajar para congressos com as despesas pagas pela indústria farmacêutica se forem prestar serviço de cunho científico, como dar uma palestra ou um curso.

Com isso, ficará proibido o patrocínio de viagens para o profissional que só for assistir a um evento. Nesta semana, cerca de cem médicos brasileiros estão em Orlando (EUA), assistindo ao congresso de diabetes, a maioria a convite de laboratórios.

A proposta, inspirada em um modelo que vigora há 11 anos em Portugal, está sendo costurada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), a AMB (Associação Médica Brasileira) e a Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa). Será apresentada na plenária do conselho, no dia 16 de julho.

O presidente do CFM, Roberto D Ávila, diz que a restrição a viagens é um caminho sem volta. Se não houver acordo com a indústria, ela virá em forma de resolução.

Antônio Britto, presidente da Interfarma, está de férias e não foi encontrado ontem para falar sobre o assunto. Ele tem dito, porém, que a entidade está empenhada em fechar o acordo, por considerar essencial que a relação entre indústria e médicos fique dentro do campo ético.



Regras transparentes

Nos últimos anos, estudos têm demonstrado que, ao aceitar favores da indústria, o médico fica mais predisposto a retribuí-los, prescrevendo seus produtos.

"Só pode pagar passagem, hospedagem e inscrição para quem vai falar [no congresso]. Por que [a indústria] paga a minha ida e não paga o do colega ao lado? Por causa dos meus olhos verdes? O critério é a caneta. Ou pagam para quem já prescreve os produtos deles ou para quem não prescreve e precisa ser cativado", diz D Ávila.

A ideia, ele explica, não é fechar as portas à indústria, mas criar regras transparentes. "A indústria pode ajudar de maneira genérica, dando, por exemplo, um subsídio para a comissão científica do evento. Com isso, a inscrição custaria a metade."

Para José Luiz Gomes do Amaral, presidente da AMB, já há leis que tentam disciplinar essa questão, inclusive uma declaração da Associação Médica Mundial da qual o Brasil é signatário.

"Não precisamos de novas leis. Precisamos que sejam cumpridas as existentes, que são absolutamente claras."
Ele diz que a indústria precisa do médico para se desenvolver. E que esse precisa dela para acompanhar as novas tecnologias. "Precisamos encontrar o equilíbrio dessa relação, que é positiva, e evitar que seja má utilizada."



Profissionais temem prejuízo na atualização

Médicos consideram que é preciso limitar os abusos na relação entre a categoria e a indústria farmacêutica, mas alguns temem que o veto a viagens possa trazer prejuízo à atualização profissional.

O oncologista Paulo Hoff, professor da USP e diretor do centro de oncologia do Hospital Sírio-Libanês, lembra que os honorários da maioria dos médicos são baixos, e a indústria acaba sendo uma ponte para o aprendizado.

"É uma tendência mundial olhar essa relação com muito cuidado. A prescrição do médico tem uma importância muito grande no que a indústria vai vender. Então, tem que ter transparência. Não pode haver abusos."

Por outro lado, ele defende que deva haver cuidado para não limitar demais o acesso dos médicos à educação continuada, que hoje depende do patrocínio da indústria.
Hoff costuma dar aulas em congressos internacionais de oncologia e declara seus conflitos de interesse. Ano passado, ele informou ser consultor da Roche e ter recebido fundos de pesquisa da AstraZeneca e da Pfizer, de acordo com o "Asco Cancer Education Committee".

O cardiologista Sergio Timerman, do InCor (Instituto do Coração), diz que é preciso diferenciar o médico que realmente vai a congressos para adquirir mais conhecimento daqueles que veem nesses eventos apenas "uma maneira de sair do país".

"O médico sério, que busca atualização científica, não pode ser penalizado. Se existem os que querem fazer turismo, ótimo, mas façam depois do evento, com seus próprios recursos." Timerman declara não ter conflitos de interesse com a indústria.

José Erivaldes Guimarães, vice-presidente da Fenam (Federação Nacional dos Médicos), defende a proposta do CFM. "Muitas dessas viagens para congressos têm uma mensagem subliminar de cooptação do profissional médico para prescrever determinado tipo de remédio."

Rubens Belfort Júnior, professor titular de oftalmologia da Unifesp, também considera a medida do CFM "extremamente salutar".

"Não acho exagero. Não há dúvida de que hoje há um grande excesso na liberdade de marketing das companhias e nesse relacionamento, às vezes promíscuo, com os médicos."



Brindes e subvenções podem influenciar decisões médicas

Médicos negam até a morte que o fato de receberem um ou outro brinde da indústria farmacêutica possa comprometer-lhes a isenção ou exercer influência sobre seu julgamento profissional.

Em alguma parte de seus cérebros isso é verdade. Ninguém em juízo perfeito receitaria algo sabidamente pior para o paciente em troca de mimos -e ainda colocando em risco a própria reputação.

O problema é que o circuito racional não é o único a atuar na cabeça das pessoas -nem mesmo daqueles que procuram praticar uma atividade baseada em evidências científicas.
Isso, aliás, nem deveria ser uma surpresa. Publicitários sabem há décadas que o cérebro se deixa persuadir pelas mais diversas vias neuronais, das quais nós quase nunca tomamos consciência.

O que a literatura mostra é que a propaganda e os presentes oferecidos pelos laboratórios funcionam. Numa metanálise clássica publicada em 2000 no "Jama", Ashley Wazana concluiu que a distribuição de itens como brindes, amostras grátis, refeições e subvenções para viagens e simpósios têm indiscutível efeito sobre as atitudes dos médicos em relação ao laboratório e sobre suas prescrições.

Pagar uma viagem para um profissional, por exemplo, aumenta entre 4,5 e 10 vezes a probabilidade de ele receitar as drogas produzidas pela empresa patrocinadora. Efeitos semelhantes foram observados -e medidos- para cada uma das interações mais comuns entre médicos e a indústria.

Esse marketing ativo é tão eficiente que se estima que as empresas farmacêuticas a ele dediquem entre 25% e 30% de seus orçamentos -uma fatia calculada em US$ 60 bilhões anuais, de acordo com um trabalho de 2008. A título de comparação, o quinhão destinado à pesquisa é de US$ 31,5 bilhões.

Daí não decorre que os laboratórios sejam a encarnação do mal e que todo relacionamento entre indústria e médicos seja espúrio. Em muitas situações, os interesses de empresas, profissionais e sociedade convergem. É o caso do desenvolvimento de novas drogas e monitoramento das existentes.

Mas, como as ênfases e lealdades são diferentes, é importante criar mecanismos que tornem as relações mais transparentes e reduzam o peso dos fatores extracientíficos. É o que o CFM começa a fazer, com mais de uma década de atraso.



Universidade nos EUA veta laboratório

A Universidade de Michigan, uma das maiores dos EUA, decidiu vetar o financiamento da indústria farmacêutica de programas de educação médica continuada, a partir de 2011.

Propagandistas de laboratórios já eram proibidos de circular nas dependências da universidade e dos hospitais-escola. No Brasil, não há restrição nessas atividades.

Segundo James Woolliscroft, professor da faculdade de medicina de Michigan e responsável pelo setor de assuntos regulatórios, a decisão foi baseada em uma revisão da literatura médica sobre a influência da indústria.

"Os membros do corpo docente desejam uma educação livre, baseada nas melhores evidências científicas e em uma visão equilibrada do tema em discussão."

Hoje, a universidade recebe financiamentos da indústria na ordem de US$ 1 milhão para seus cursos de educação médica. Nos EUA, a estimativa é que a cifra chegue a US$ 1 bilhão-quase metade das despesas totais dos cursos de educação médica.

O debate sobre se os médicos devem ter um modelo de educação livre da indústria é delicado e tem sido alvo de muitas discussões nos EUA.

Lá, a atualização médica é uma exigência para a renovação do título de especialista. O médico acumula créditos a cada evento científico de que participa e, de tempos em tempos, presta conta.

Recentemente, o organismo de acreditação para o ensino médico informou que não reconhecerá créditos vindos de eventos patrocinados pela indústria.



Fonte: href="http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/759403-patrocinio-para-viagem-de-medico-sera-limitado.shtml" target="_blank">Folha de São Paulo

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