Quando sai o médico e entra o padre


Nascemos fadados à traição.


Um dia, inevitavelmente, nosso corpo, nosso maior amigo, companheiro de intensos prazeres, nos trairá. E não há como fugir, conviveremos com ele, queiramos ou não. Ninguém pode fugir do próprio corpo para continuar a viver. Quando a senhora das sombras se instala nas células é preciso negociar com ela. O debate sobre cuidados paliativos que a lúcida resolução do Conselho Federal de Medicina acaba de abrir participa dessa negociação. Enfim admitimos o direito de morrer e de morrer em paz.


Quem teve a experiência de acompanhar um doente terminal em longa agonia sabe bem quanta desumanidade pode se esconder sob uma suposta intenção de salvar, sob a parafernália tecnológica dos centros de tratamento intensivo. Conhece a convivência com um corpo presente, de onde a vida, a verdadeira vida, aquela que pulsa no que os religiosos chamam de alma e os leigos de espírito, ali onde cada um se reconhece e reconhece os outros, os que amou e que o amaram - essa verdadeira vida já se foi. Resta esse corpo objeto, plugado, um emaranhado de fios, sobre o qual a medicina multiplica intervenções cada vez mais sofisticadas, milagres de ressurreições passageiras, que alimentam cada dia esperanças fadadas ao fracasso.


O corpo, ali, uma presença ausente.


No corredor, o vale de lágrimas e angústias, as famílias, os amigos.


A resolução do Conselho Federal de Medicina tem entre seus méritos o de quebrar o silêncio e abrir uma dinâmica nova na rotina macabra do fim da vida.


Evolui-se agora para discutir não apenas nas comissões de bioética ou nos conselhos de medicina, mas dentro de cada família confrontada ao fim da vida de uma pessoa querida, como melhor acompanhá-la nesse momento em que, desvalida, acrescenta-se à dor física a dor moral. Os cuidados paliativos, destinados a suprimir o sofrimento - e há imensos progressos nesse campo - e deixar agir a natureza, sem intervenção protelatória, são um reconhecimento e um respeito da vontade do paciente e, na impossibilidade dele, de sua família.


Aliviada é também a dor dos próprios médicos, que vivem uma divisão penosa entre assumir uma derrota que é a morte do paciente, que eles não querem e contra a qual lutam bravamente, e insistir no tratamento que, bem sabem, não leva a nada.


Saem perdendo com essa resolução aqueles para quem uma agonia interminável é uma fonte de lucro certo e, não nos enganemos, esses também existem e não são poucos. É o lado sombrio, o avesso do progresso científico, a utilização do conhecimento com o objetivo exclusivo de ganhar dinheiro, dos que substituíram o juramento de Hipócrates pelos negócios de hipócritas.


Apesar de ser uma experiência inarredável, a morte ainda não é enfrentada pela sociedade, é um assunto incômodo, ocultado. Talvez por defesa contra a evidência e o horror da finitude, talvez porque a questão traga consigo problemas delicados. Desdobrase no necessário questionamento dos limites da ciência, da diferença entre poder e dever que funda as comissões de bioética que estão se impondo, em todos os países, como interlocução essencial entre ciência e sociedade.


Exige também uma previsão de meios para a realização de uma vontade que a sociedade exprime.


Que meios são necessários para que seja possível a morte com dignidade? Que recursos têm os médicos, quem os ajuda? O pessoal de enfermagem improvisa como pode uma relação dificílima com a angústia e o sofrimento de quem agoniza e com o desespero de quem o cerca. Todos, médicos, enfermeiros, famílias confrontados ao fantasma de suas próprias mortes.


Porque aqui reside um dos problemas mais espinhosos dos cuidados prestados a um doente terminal, a convivência com o que sendo a realidade sabida e comum a todos, o incontornável denominador comum da história humana, continua a ser a grande ausente, aquela de que não se fala, em quem ninguém, no fundo, acredita.


É cena clássica do cinema e da literatura o momento em que sai o médico e entra o padre. Era assim quando as religiões guardavam o monopólio da simbolização da morte. As sociedades leigas são chamadas a assumir a responsabilidade por esta dimensão da vida. Foi o que fez o Conselho Federal de Medicina. Nem tudo foi dito, o assunto está longe de ser esgotado.


Tudo está por fazer, sobretudo a criação de condições materiais, como hospitais preparados não somente para a cura, mas também para o acompanhamento na passagem para a morte.


As tecnologias aplicadas à medicina não param e não pararão, felizmente, de se desenvolver. Quanto mais progridem, mais é necessário que a sociedade discuta e proponha novas legislações sobre seu uso. Quando nos pronunciamos sobre como morrer, o que está em discussão é como viver, como integrar o momento da morte à vida dos seres humanos, insistindo em que ele seja uma última experiência de afeto e de afirmação da dignidade.


Morrer sozinho, na companhia de máquinas, é destino que ninguém merece.



ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. Email: rosiska.darcy@uol.com.br.

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