Que médico é esse?

Eduardo Murilo Novak

Rotineiramente diante de uma plateia de estudantes de Medicina, em que estamos ilustrando a teoria por meio de situações práticas vivenciadas no dia a dia do cenário médico-jurídico, surge a pergunta: “Aquele médico que não diagnosticou uma fratura do colo do fêmur de idoso na emergência, somente vindo a fazê-lo dali a três dias, vai ser cassado pelo Conselho?”

A resposta habitual é que dependerá do caso concreto, de toda a situação fática, das condições e do material disponíveis no momento. Enfim, tudo deverá ser contextualizado para que a análise desse conjunto embase a tomada de decisão daquele Colegiado. Mas arrisco dizer que, embora as condutas culposas sejam evidentemente reprováveis, é pouco razoável que desse exemplo sobrevenha a supressão do direito de exercer a profissão.

Esses prolegômenos servem para que se possa adentrar o tópico central. Deixaremos de lado o profissional que respeita seu Juramento, faz o bem, não faz o mal, presta a melhor assistência possível. Jogaremos um facho de luz naquele que tem a vontade de lesar, de causar dano, num ato volitivo, doloso. Então aqui já surge o primeiro questionamento: o que levaria um médico a homenagear seus interesses individuais em detrimento dos interesses do paciente? Quais seriam esses interesses vis, ou obscuros, que fulminarão a honra, a intimidade, a vida privada, a dignidade do paciente?

Para responder a isso, deve-se atentar de antemão que a licença que o Estado dá ao médico para atuar lhe permite adentrar na mente, no corpo e na intimidade do paciente, com o fim de assistência. É muito poder. É uma autoridade quase suprema numa relação interpessoal, diante de alguém frágil, vulnerável, que precisa expor o âmago de seu problema para só então o esculápio desvelar a solução.

Deturpar essa autorização é que embasa a culpabilidade. Atribui-se àquele que firmou que não há mandato ilimitado do médico sobre o paciente, o então Procurador-Geral da Câmara Civil da Corte de Cassação de Paris, André Marie Jean-Jacques Dupin, a seguinte sentença: “Cada profissão encerra em seu seio homens dos quais ela se orgulha e outros que ela renega”.

Isso explica o porquê da existência daquele que se vale dessa “licença” dada pelo Estado para desvirtuá-la, corrompendo os costumes, cometendo crimes, lesando o ser humano. Isso é materializado naquela conduta abjeta de valer-se do exame físico para satisfazer sua lascívia, insinuando-se ou tocando partes íntimas em total violação ao pudor. Ou no oportunista que vê uma família chorando a morte iminente do querido ente com neoplasia e vem oferecer-lhe a cura milagrosa por meio de uma “poção mágica”, cujo único inconveniente propagandeado é custar milhares de dinheiros. Ou no malfeitor que viola as normas legais referentes ao aborto. Ou no que anuncia reiteradamente em suas redes sociais que uma supervitamina aumentará a imunidade do paciente, tornando-o quase indestrutível. Ou naquele que se aproveita do momento da morte – experiência de maior fragilidade vivida pelos familiares – para, quando era sua função fazê-lo gratuitamente, exigir indevidamente uma quantia para preenchimento de documentos legais. Ou na conduta daquele que, praticando uma medicina “alternativa”, indica e, pior, executa uma cirurgia apenas porque vai ter uma remuneração “extra”, sabendo que naquele caso específico poderia estar em curso o que apregoava Voltaire, ao mencionar: “A arte da medicina consiste em entreter o paciente enquanto a natureza cura a doença”. Corrigida para os tempos hodiernos, torna-se: “A arte da medicina alternativa consiste em entreter o paciente enquanto médicos curam a doença. ”

Esses exemplos de transgressões transbordam e por isso indignam a sociedade, que clama por reprovabilidade exemplar, vez que não há lugar para se condescender com o arbítrio imoral, ilegal ou antiético. Jamais! O indivíduo que se vale dessas condutas dolosas age sorrateiramente, geralmente em seu próprio território, gozando da confiança do paciente e, então, quando aquele facho é jogado sobre seus ombros, por meio de uma denúncia que ensejará uma apuração e ulterior julgamento, sua reação se assemelha à atonia da raposa desencadeada ao acender da luz no momento seguinte à abertura da porta de um celeiro. “Fui pego”. A clandestinidade encontrou seu fim.

*Eduardo Murilo Novak é Médico ortopedista, conselheiro do CRM-PR e professor de Bioética na UFPR, PUCPR e Mackenzie.

**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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