Segredos vitais

Hélio Schwartsman

É assustador o caso do médico que chamou a polícia para prender a paciente que acabara de atender por complicações resultantes de um aborto autoinduzido. Se a atitude desse pediatra se generalizasse, muita gente deixaria de procurar o médico, o que geraria graves prejuízos à saúde pública. Não é por outra razão que tanto o Código de Ética Médica (art. 73) como o Código Penal (art. 154) vedam a violação de sigilo profissional.

Aliás, numa daquelas reviravoltas de novela, não é impossível que esse médico perca o registro, amargue de três meses a um ano de detenção e a garota saia inteiramente livre, já que um bom advogado pode conseguir a anulação das provas contra ela, uma vez que têm origem ilícita. Ao então ex-médico só restaria o papel de mártir da causa pró-vida.

Não é, porém, o aborto que quero discutir hoje, mas a questão do sigilo. Nestes tempos em que tanto se clama por transparência, não podemos esquecer que algum nível de segredo é fundamental para manter a sociedade coesa. Para além de preservar a confiança institucional em médicos, advogados, banqueiros, padres etc., o sigilo azeita também as relações pessoais. Alguns dos sentimentos que mais reverenciamos, como a amizade e o amor, seriam impossíveis se não pudéssemos contar com a discrição de amigos e amantes.

Mais até, há motivos para acreditar que mantenhamos segredos de nós mesmos. Essa ideia, que constitui a espinha dorsal da psicanálise, está também em modelos da neurociência. Com 90 bilhões de neurônios interligados em 100 trilhões de sinapses, o cérebro é tudo menos uno. Ele opera através de diferentes módulos que podem guardar segredo uns dos outros e até manter "opiniões" distintas sobre o mesmo tema. Eles estão em constante competição e vence quem, naquele instante, gritar mais alto, caindo no radar da consciência, que ignora cerca de 98% do que se passa em nossos cérebros.

Artigo escrito por Hélio Schwartsman (bacharel em filosofia e autor de “Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão”), publicado no dia 25 de fevereiro de 2015 no jornal Folha de S. Paulo.

*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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