Um grave problema na assistência médica

Braulio Luna Filho

"O Brasil vive o paradoxo do aumento substancial do número de médicos e da escassez deles para além dos centros urbanos. Com 392 escolas médicas, em pouco tempo ultrapassaremos a Índia, que tem 396 instituições de ensino médico e 1,4 bilhão de habitantes, e alcançaremos a estupenda marca de mais de 1 milhão de médicos. Mantidas a situação do mercado de trabalho e as características sociais dos médicos, haverá uma pletora desses profissionais que, por razão socioeconômica e da estrutura de saúde, não solucionarão, mas agravarão as distorções existentes. Ou seja, cerca de 2/3 desses profissionais continuarão se estabelecendo nas cidades litorâneas ou próximas das Regiões Sul e Sudeste.

Mas há outro problema, que independe de estímulo financeiro ou pressão social e que contribui para a inadequação do tratamento da saúde da população. Vejamos, então.

Paralelamente ao aumento do número de escolas médicas e à consequente entrada no mercado de trabalho desses novos médicos, passamos de 1,6 médico por mil habitantes, em 2010, para 2,6 médicos, já em 2023. Indiscutível, pelas razões apresentadas em seguida, que esse fato gerou um incremento exponencial das denúncias nos Conselhos Regionais de Medicinas e nos Tribunais de Justiça daquilo que é genericamente chamado de “erro médico”. Destacam-se, entre os vários motivos desse fenômeno, o descompasso entre a abertura destrambelhada de escolas médicas no País e a falta de estruturas educacionais e de treinamento dessas instituições.

O preocupante, nesta situação, é a constatação da deterioração da qualidade da formação médica. Esse diagnóstico foi comprovado pelo exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) – CRM de São Paulo – entre os anos de 2005 e 2017, quando cerca de 27 mil recém-formados se submeteram à avaliação. Nesse período, menos de 50% dos recém-formados apresentavam condições mínimas para o exercício profissional. Destaque-se que o exame do Cremesp se espelhava em metodologia de avaliação realizada pela Federation of State Medical Boards e a National Board of Medical Examiners – United States Medical Licensing Examination Step II Clinical Knowledge (USMLE Step II CK) –, nos EUA.Recentemente, o Revalida, exame realizado sob auspício do MEC para a validação do diploma de médicos formados no exterior, teve seu pior resultado: menos de 4% de aprovação. A pergunta ingênua que os antagonistas da avaliação externa das escolas médicas e promotores da abertura de novas escolas médicas no País não ousam encarar é: por que não aplicar o Revalida nos médicos recém-formados no Brasil?

Não obstante as diferenças metodológicas entre os exames referidos, desafio que os graduados em escolas médicas brasileiras não teriam melhor desempenho. Excluo dessa generalização os alunos provenientes daquelas escolas com excelentes corpos de docentes, infraestrutura educacional e hospital-escola. Infelizmente, estas são a estrondosa minoria.

Qual a relevância deste repto? Um médico malformado e com treinamento inadequado irá expor a saúde e, quiçá, a vida de milhares de pacientes no transcurso de sua vida profissional. O médico, em média, atua profissionalmente por cerca de 45 anos. Por outro lado, se não houver critérios adequados na autorização do pleno exercício profissional, a situação atual de aumento exponencial de erros médicos continuará piorando, com grande ônus para a sociedade e milhares de pacientes.

Na era tecnológica que vivemos, o arcabouço legal do exercício profissional da medicina não pode ser mais ancorado em lei ou resoluções da primeira metade do século passado. Hoje, poucos países no mundo autorizam os médicos recém-formados a atuarem profissionalmente com base apenas em critérios das instituições em que eles se formam. Escusado dizer que a maioria das escolas médicas é privada e tem mensalidade acima de R$ 10 mil. Portanto, deveriam propiciar uma formação adequada.

Mantido o cenário atual em que as avaliações das instituições são reconhecidamente insuficientes, teremos uma enxurrada de novos médicos – a maioria incompetente – atendendo (o correto seria desatendendo) a população e onerando os serviços de saúde independentemente de serem públicos ou privados. Os exames aplicados pelo Cremesp anteriormente mencionados, embora restritos ao Estado de São Paulo, são evidências cabais para essa afirmação. Por isso, urge a necessidade de uma avaliação nos moldes daquelas que são realizadas nos EUA e no Canadá há quase um século, onde nenhum médico recém-formado inicia a prática médica sem antes comprovar que tem as condições mínimas para o exercício profissional. Defendo que esse tipo de avaliação seja aplicado por instituições não governamentais, como, por exemplo, os Conselhos Regionais de Medicina, por serem menos infensas às pressões políticas ou vieses econômicos.

A experiência bem-sucedida dos exames do Cremesp nesse sentido respalda essa proposta. A alternativa burocrática, mas com os riscos já assinalados, seria a extensão do exame do Revalida também para os recém-formados brasileiros. De outra maneira, muito em breve viveremos o pior dos mundos: médicos a granel, mas com alto potencial de lesar os pacientes."

*Ex-Presidente e coordenador do Exame do Cremesp, ex-Research Fellow Na Harvard Medical School (Eua), É Professor Adjunto e Livre-Docente da Escola Paulista de Medicina (Epm-Unifesp).

**Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 13/06/2023.

***As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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