Uma luta de 20 anos, com inspiração brasileira

Ana de Lemos

País foi referência internacional em tratamento e prevenção contra a Aids

Há 20 anos, Médicos Sem Fronteira (MSF) começou a tratar pacientes com HIV/Aids. As atividades, iniciadas com um pequeno programa na África do Sul para evitar que grávidas transmitissem o vírus a seus filhos, se expandiram gradualmente, inspirando-se em grande medida no que acontecia no Brasil.
A descoberta da eficácia dos medicamentos antirretrovirais (ARVs), na década de 1990, mudou totalmente as perspectivas das pessoas vivendo com HIV/Aids: de uma quase sentença de morte, a infecção passou a ser controlável, como uma doença crônica. Os altos custos do tratamento, porém, tornavam-no inacessível à grande maioria.

Naquele momento, MSF testemunhava os efeitos devastadores da epidemia e entendia que não podia omitir-se de combatê-la com a mesma energia com que atuava em conflitos armados, catástrofes socioambientais e desnutrição. Os índices de infecção pelo HIV na África do Sul (e em outros países do continente) superavam os 10%, e mais de mil pessoas morriam todos os dias no país em consequência da Aids.

Mas, além da doença em si, era necessário enfrentar adversários poderosos, como desinformação, estigma, o poder da indústria farmacêutica e a falta de vontade política para enfrentar o problema. Por isso, o que ocorria no Brasil foi uma inspiração para MSF.

Com grande mobilização da sociedade civil, foi estabelecido um programa pioneiro, que conseguiu provar, na prática, que as desculpas usadas no final da década de 1990 para não oferecer tratamento em países pobres eram falsas: pessoas com pouca ou nenhuma instrução formal eram capazes de seguir corretamente o tratamento; o país conseguiu montar uma estrutura eficiente de atendimento e distribuição universal e gratuita do tratamento; venceu os altos custos produzindo genéricos mais baratos. Essas medidas, somadas a estratégias inovadoras de prevenção, elaboradas em parceria com a sociedade civil, evitaram centenas de milhares de hospitalizações e de mortes, bem como de novas infecções.

Em 2001, depois da enorme demanda pelo programa pioneiro contra transmissão vertical, MSF iniciou seu primeiro projeto de distribuição de ARVs. Diante da negativa do governo sul-africano em enfrentar as grandes farmacêuticas e permitir a importação de genéricos, MSF decidiu importá-los, e uma parte dos medicamentos desta fase inicial veio do Brasil. A decisão foi tomada porque era inviável continuar comprando poucos tratamentos, de mais de US$ 10 mil por paciente/ano, com remédios de marca, mesmo com o risco de ações judiciais por partes desses fabricantes.

Os resultados positivos do projeto mostraram a efetividade dos ARVs e se tornaram ferramenta de pressão para que autoridades da África do Sul, anos depois, universalizassem o acesso gratuito. Foram também inspiração para a ampliação do diagnóstico e tratamento que contribuiu muito para salvar vidas em diversos países.

Hoje, a epidemia de HIV segue sendo uma preocupação para MSF, e atendemos anualmente a quase 200 mil pacientes em países da África, Oriente Médio e Europa Oriental. Compartilhamos a visão de que os avanços dos últimos anos não podem ser um pretexto para que as medidas de combate ao vírus sejam relaxadas.

O que se fez no Brasil foi e continua sendo um exemplo para o trabalho de MSF no combate ao HIV/Aids. Duas décadas depois de termos começado nossa luta contra a doença, vemos com preocupação o recuo de financiadores e governos. No Brasil, dados apontam uma estagnação ou, em alguns casos, piora nos indicadores de alguns grupos mais vulneráveis. O fenômeno é global, e para ser revertido exige liderança, investimento e participação social, sempre colocando as pessoas afetadas em primeiro lugar.

A história recente e a experiência de MSF demonstram que as melhores estratégias de combate ao HIV/Aids pressupõem manter uma estrutura de atendimento sólida, inclusiva e acolhedora, com o máximo de informação e sem estigma, para facilitar o diagnóstico e o tratamento precoce com ARVs.

*Ana de Lemos  é Diretora-executiva de Médicos Sem Fronteiras – Brasil.

**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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