31/10/2006

Uma proposta terapêutica para a saúde

Oferecer saúde digna à população é o grande desafio e a grande oportunidade do próximo governo


Com A troca de três ministros em quatro anos, a saúde se tornou caótica. Faltam acesso e acolhimento nos hospitais públicos, superlotados, e nos postos de saúde, nos quais não há atenção primária com resolutividade e universalidade.

O sistema se recentralizou na contramão da história, os hospitais federais e os filantrópicos foram abandonados, o financiamento é precário, faltam remédios e a Lei de Patentes, que destruiu a indústria farmoquímica brasileira, não continuou a ser redirecionada. O quadro é assimétrico, mas prevalente em todo o país.

Os resultados são visíveis. Nossa mortalidade infantil é 30% maior que a dos países com a mesma renda per capita; a mortalidade materna é 20 vezes a de Portugal; morrem 5.000 mulheres todos os anos de câncer de colo uterino -doença sexualmente transmissível, já controlada nos países que se preocupam com a saúde; a dengue se tornou endêmica e é aceita como tal.

Há mais. O SUS se tornou uma caricatura grotesca do que está na Constituição. Seus usuários estão descontentes, mas não reagem. Para eles, saúde é entendida como favor, não como direito. A classe média, que tem poder de controle social, foi expulsa pelo mau atendimento e, hoje, freqüenta, com sacrifício, os planos de saúde, cujo órgão gestor (ANS) se preocupa só com a saúde financeira das operadoras. A medida provisória nº 148/03, que regulamentou o setor, é uma caixa de maldades contra médicos, hospitais e usuários, particularmente os idosos, pois as prestações crescem tanto que eles se vêem obrigados a abandonar os planos, pagos por longos anos.
A situação é dramática. Entretanto, bastariam poucos movimentos -corajosos e certeiros-, recompondo a política nacional de saúde, para darmos um salto de modernidade, eficiência e solidariedade.

O primeiro é a organização, em todo o país, de uma atenção primária multiprofissional, com atendimento integral, que inclui educação para a saúde, fácil acesso, bom acolhimento, resolutividade e universalidade.

Na década de 90, criamos esse modelo no hospital Pérola Byington (SP). Por oito anos, foram atendidas -com excelentes resultados e custo- 3.000 mulheres por dia. Com sua aplicação nos centros de saúde, será possível prevenir, rotineiramente, a maioria das doenças, e resolver, nesse nível, 85% dos problemas, desonerando hospitais e prontos-socorros.

Outra providência é radicalizar a descentralização para os municípios, que, a partir da década de 80, ficaram com a responsabilidade da saúde, mas foram afastados das instâncias técnicas e desfinanciados. Recebiam da União 80% do que gastavam, e hoje recebem apenas 20%.

Aplicar recursos na ponta rende mais. Os prefeitos conhecem a sua realidade, fazem o que é preciso com simplicidade e têm ajuda da comunidade. A descentralização coloca o usuário próximo do gestor, permitindo sua participação crítica, que aprimora continuamente o sistema.
O terceiro movimento é moralizar o relacionamento público-privado e acabar com o "teto" de faturamento do SUS nos hospitais públicos e nos bons filantrópicos, que devem ser considerados como públicos. Não tem sentido um hospital universitário trabalhar com limite de atendimentos. O limite deve ser a sua capacidade instalada. É necessário também subordinar a ANS ao Conselho Nacional de Saúde.
Por fim, a questão do financiamento. Em 2005, o país usou R$136 bilhões (42% de seu Orçamento) para pagar juros da dívida. Aplicou na saúde muito menos -R$ 36 bilhões-, o equivalente a apenas 2,5% do PIB.

É claro que a solução depende de uma política econômica menos submissa aos interesses do capital. Entretanto, algumas mudanças possíveis ajudariam, e muito, a avançar: acabar com o calote de R$1 bilhão/ano (acórdão nº 1.146 de 2006 do TCU) que os planos de saúde aplicam no SUS; vincular recursos da CPMF à saúde e cumprir a emenda constitucional nº 29. Com isso, em pouco tempo, teríamos 5% do PIB em saúde. Na maioria dos países que a têm como prioridade, o percentual é de 10%.

Na saúde, a distância entre o que sabemos, podemos e devemos fazer e aquilo que se tem feito é abismal. Cobrir essa distância significa oferecer saúde digna à população. Esse é o grande desafio, mas é também a grande oportunidade do próximo governo.


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI , 71, professor emérito da USP e da Unicamp, é deputado federal pelo PFL-SP e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi secretário da Educação do município de São Paulo (2005-2006), secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (1986-1992) e reitor da Unicamp (1982-86).


Fonte: Folha de S.Paulo - 30/10/2006

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